A Câmara Corporativa, consultada, nos termos cio artigo 103.º da Constituição, acerca do projecto do lei n.º 12, emite, pela sua secção de Interesses de ordem administrativa (subsecções de Defesa nacional e de Justiça), à qual foi agregado o Digno Procurador Afonso de Melo Pinto Veloso, sob a presidência de S. Ex.ª o Presidente da Câmara, o seguinte parecer:

Apreciação na generalidade O projecto de lei n.º 12, agora submetido à apreciação da Câmara Corporativa, dispõe que os oficiais do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, em quaisquer situações - de actividade, reserva e reforma - prescritas nos respectivos estatutos que os regem, ficam sujeitos à jurisdição dos tribunais militares, sendo revogada a disposição final do artigo 41.º da Lei do Recrutamento e Serviço Militar, de 1 de Setembro de 1937, no que se refere ao foro militar para oficiais e praças reformados.

Este projecto, de forma tão concisa e de aparência tão simples, tem no entanto um alcance que transcende os limites restritos da sua incidência preceituai.

Torna por isso necessária uma referência, embora sucinta, aos factores de ordem política e social que têm condicionado a evolução daquele foro, paralelamente u difusão de correntes doutrinárias, que ainda hoje suscitam problemas de controversas soluções práticas. A diversidade das circunstâncias, a sucessão das épocas, as influências de natureza doutrinária de origem ou feição política ou filosófica, quando não meros mitos ideológicos ou necessidades ocasionais da política interna, têm induzido a alterações dos sistemas judiciários que nem sempre a posterior experiência mostra terem sido necessárias ou até convenientes.

A jurisdição militar não fogo a esta observação. E, no entanto, se há justiça que se deva manter quanto possível em moldes tradicionais, já bem conhecidos e aceites, acessíveis a todas as mentalidades e adaptáveis a todas as vicissitudes do meio em que ela actua, essa é a justiça militar.

É preciso, por isso, proceder com cautela e não ter pressa em introduzir modificações ou inovações que possam brigar, ou mesmo destoar, com o plano e disposições do Código de Justiça Militar, já sancionados por longa prática sem atritos.

Mas não há dúvida de que, não obstante, chega um momento em que os p róprios códigos carecem de revisão.

É o que acontece presentemente com o nosso Código de Justiça Militar, que não só está desactualizado em relação a penas e sistema prisional, que têm de jogar com as sensíveis alterações em tal matéria introduzidas na legislação comum, mas também há-de acompanhar, na medida aplicável, os aperfeiçoamentos conseguidos pelo Código de Processo Penal e legislação complementar para os instrumentos de investigação criminal e trâmites da organização processual até final julgamento.

Ora, temos conhecimento de que foi preparado o considerável trabalho da revisão daquele código, havendo um projecto completo, elaborado por distinto auditor militar, em estudo no Ministério do Exército.

Nestas condições, a Câmara Corporativa não pode deixar de dizer que só lhe não afigura oportuno tomar decisão antecipada sobre um assunto desta natureza, que pode estar em contradição com o plano adoptado pelo Governo para o novo código, a menos qu e a Assembleia Nacional entenda dever estabelecer previamente doutrina que imponha desde já soluções a adoptar.

Feita esta necessária reserva, a atenção que nos merecem os Sr s. Deputados proponentes e o dever constitucional de esclarecer as questões sujeitas a debate parlamentar levam-nos a desenrolar, até onde nos for possível, o fio de um assunto que nos parece enriçado por sérias dificuldades. O foro militar tem antiquíssima tradição. Pode dizer-se que é coetâneo do primeiro exército organizado, pois não pode haver organização sem disciplina, disciplina sem autoridade, autoridade sem regra, regra sem um órgão que a interprete e faça observar.

Esse exército - qualquer que fosso a modalidade assumida através dos tempos: voluntário ou coagido, mercenário ou patriota, partidário ou nacional, recrutado na tribo, na casta, no feudo, na classe ou na nação - representou sempre uma força, mais ou menos ordenada e armada, capaz de se impor em combate e, como tal, dotada de privilégios dentro dos povos a que assistia ou em que agia.

Eram esses privilégios constituídos tanto por especiais direitos como por especiais deveres, primeiramente estabelecidos pelos rudimentares pactos firmados entre os chefes e seus homens de armas e depois estratificados em preceitos consuetudinários. cuja veemente força de aplicação se transmitiu de época em época, ato que foram reduzidos u normas escritas, lentamente modificadas, ao passo que se iam subindo os degraus da civilização.

Esta é a noção que se pode colher quando se lêem as descrições dos viajantes e etnólogos sobre a vida dos povos primitivos, ou se estudam os clássicos gregos e latinos, ou percorrem os textos da legislação bárbara e das crónicas medievais - e é de assinalar a convenção firmada entre D. Afonso Henriques e os cruzados que o ajudaram na conquista do Lisboa-, pois que, em todos os tempos, o chefe teve necessidade de distribuir aos componentes das suas tropas uma justiça enérgica e expedita, que mantivesse a ordem nas relações deles entre si e também com as populações em que viviam ou mesmo contra as quais actuavam; mas, simultaneamente, tinham de adequar tanto as normas como as sanções à mentalidade do homem de guerra, de modo u conciliar a rigorosa repressão dos desmandos com a suprema necessidade de manter a coesão da força armada e não quebrantar e antes estimular o espírito guerreiro,