cm 1386 no oratório de Filipe, o Ousado, o primeiro tratado de comércio entre a Flandres e Portugal; em Burges, na praça ogival dos Agostinhos, surgia a primeira feitoria portuguesa; depois, com o assoreamento do Zwyn e o declínio da Veneza flamenga - mas tarde convertida na Bruges la Morte, de Rodenbach - nova feitoria de Portugal se instalava «m Antuérpia Em regra, as Convenções políticas ou político-económicas dirigem-se a realidades eminentemente actuais. Não têm passado, ou o seu passado não interessa. Pelo contrário, as Convenções ou Acordos culturais constituem o produto não só de necessidades presentes, mas de razões históricas e tradicionais cujo conhecimento importa à sua perfeita compreensão, porque representam, em geral, para as Altas Portes contratantes, um título de orgulho e uma vasta capitalização de experiência. Para se ter a noção exacta da sua significação e do seu alcance é preciso olhar para trás. Será o presente que os aconselha; mas é o passado que os justifica. O Acordo cultural entre Portugal e a Bélgica, se o não abonassem fortes razões de política pragmática (respectivas sobretudo à nossa vizinhança no continente africano e à consequente necessidade de uma colaboração estreita para o - estudo de certos problemas comuns), bastaria o deslumbrante panorama de cinco séculos de intercultura para o distribuição dos volume e dos valores, observação meticulosa do documento humano - que havia de tornar possível, pouco depois, o caso genial de Nuno Gonçalves. O parentesco das duas pinturas acentuou-se com a permanência do Bernardo van Orley em Portugal; com a forte impressão produzida, entro nós pela arte de Memling; com as sucessivas encomendas de obras de mestres flamengos feitas pela nossa feitoria de Bruges; com a execução, nas oficinas dos de Bruxelas e de Tournai, de panos de armar tecidos sobre cartões de pintores portugueses (tapeçarias de Arzila, magistralmente estudadas num trabalho notável pelo presidente da Academia Nacional de Belas-Artes, Sr. Prof. Reinaldo dos Santos). Conhecem-se também, e são particularmente brilhantes - em especial no período áureo da Renascença -, as relações interuniversitárias dos dois países. Enquanto Nicolau Clenardo. mestre flamengo, latinista, helenista, hebraísta, arabista vem dirigir em Portugal os estudos do futuro cardeal D. Henrique, pêlos claustros e pelas arquibancadas da Universidade de Lovaina passam, admiráveis de dignidade, as figuras tutelares de André de Resende, de Frei Brás de Braga, do franciscano Roque de Almeida, de Frei Diogo de Murça, futuro reitor da Universidade de Coimbra, de Damião de Gois, filólogo, diplomata, historiador, músico, hóspede e amigo dilecto de Erasmo, herói que numa hora grave - o cerco de Lovaina pelas tropas de Francisco I - organiza a defesa da cidade e (tão grande era o seu prestígio) assume as responsabilidades do governo com o conde de Vernemburgo e o bailio do Brabante. Damião de Gois! Vemo-lo na casa de Anderlecht quando Erasmo Roterdamo consagra o seu Crisóstomo ao rei D. João III; em Antuérpia, na oficina de Cristóvão Plantino (hoje Museu Plantino-Moreto), ajudando o célebre impressor a plantar a vide simbólica que derramou na Europa, o «vinho da sabedoria»; finalmente, em Lovaina, recebendo o título de nobreza e a carta de brazão das mãos de um rei-de-armas de Carlos V. E a literatura? Quem ignora que Bruxelas, assistindo por duas vezes u representação de obras de Gil Vicente, abriu ao teatro português os portas do Mundo? Em 1530 foi o Auto da Lusitânia, levado à cena na Embaixada de Portugal, perante toda a corte, como refere André de Resende no Genethliacon - um ano depois, em 1531, outra peça vicentina, hoje perdida, Jubileu de Amores, cujo «erasmismo» suscita amargos comentários ao legado- do Papa Clemente VII. E o jornalismo? Quem pode esquecer que foi da imprensa de Lourenço de Antuérpia, na cidade de Lisboa, que saiu, em Dezembro de 1641, o primeiro jornal português, a Gazeta, cimélio precioso da hemerografia nacional? Mas, já o dissemos: a intercultura luso-flamenga não é apenas uma tapeçaria histórica destinada a guarnecer as paredes de um museu. Ë uma realidade viva. É uma actualidade fremente. Sem prejuízo do seu idealismo cristão, que nele mantém intacto o culto do passado, o hércules loiro do Brabante, laborioso e tenaz, realiza a sua missão civilizadora construindo duramente, asperamente, o futuro. Um contraste inesperado surpreende quem chega hoje a Antuérpia: ao lado da alta torre gótica da catedral, maravilha de elegância e de espiritualidade, erguem-se os vinte e três andares do maciço e moderníssimo Boerentoren, um dos primeiros arranha-céus da Europa. Toda a Bélgica está ali, nesse contraste que é um símbolo, nessa afiança que é uma força. Ao tranquilo fulgor das velhas cidades da Renascença, trípticos de pedra em que há sempre um município, uma catedral e um castelo, respondem hoje, na zona do ferro e do carvão, em Liège e em Charleroi, o clarão vermelho e ciclópico dos al tos-fornos, as instalações gigantescas da grande metalurgia, as fábricas eriçadas de chaminés como florestas, os portos, as docas, ns bairros mineiros, as cidades operárias, o Mundo agitado, metálico, estrepitoso, vertiginoso que Verhaeren cantou nas Forces Tumultiveuscs e nas Villes Tantaculers. Novos interesses da vida. e da cultura vêm, não substituir-se nos antigos, mas associar-se a eles. Já não há apenas Universidades clássicas; há Universidades do Trabalho. Em 1908 o Mundo assiste ao singular es-