um apurado sentido realista das coisas: verifica e regista que a marcha do Mundo para o corporativismo - com esse nome ou sem ele, é o que menos interessa - se opera em ritmo rápido e inevitável; certifica-se de que o nosso país não pode deixar de continuar a caminhar também nesse sentido, já por imperativo doutrinário, já pela força inevitável do condicionalismo suciai e económico do resto do mundo livre; e conclui que é melhor fazè-lo trilhar esse caminho devidamente esclarecido e orientado do que ao sabor dos acontecimentos.

Além de uma justificação ideológica, a doutrinação que o Estado se propõe empreender através do presente diploma encontra, pois, uma decisiva justificação de ordem prática. Resta o terceiro e último ponto, que interessa a apreciação da legitimidade da proposta. Não basta, realmente, para legitimar a intervenção do Estado na actividade educativa, verificar que a iniciativa privada não está em condições de empreender a tarefa e apurar que o Estado se propõe educar dentro da melhor doutrina. E necessário que este dê garantias de ser verdadeiramente educador, não pretendendo impor doutrinas, mas somente propô-las à aceitação dos interessados, a quem ficará sempre salvaguardada a liberdade de as seguir ou não.

Mas que este é o caso presente ressalta com nitidez da simples leitura da proposta do Governo, onde não se encontra unia única palavra que possa traduzir coacção sobre os espíritos ou emprego da força sobre as consciências individuais. Nem outra atitude seria possível, pois «o corporativismo cristão -como acertadamente disse um dia Marcelo Caetano '- é essencialmente uma doutrina de liberdade»; e uma doutrina de liberdade não pode impor -se pela força ou pelo fanatismo, ornas apenas fazer-se aceitar pela persuasão e fazer-se respeitar pelo exemplo.

Que esse é, na verdade, o sentido da proposta, interpretou-o bem a opinião pública ao afirmar, através de um dos mais conceituados órgãos da imprensa diária, que nela «não se visa naturalmente, como sucede nos regimes fundados no materialismo, a criar fanáticos nem a impor doutrinas por métodos que contrariem a liberdade individual considerada como elemento da dignidade humana» 2. O que se pretende é apenas, como no mesmo lugar se diz, «levar uma acção social profunda e esclarecedora aos meios operários e patronais, marcando as posições que ocupam dentro da organização corporativa, definindo direitos e deveres, travando as linhas da cooperação entre o capital e o trabalho e preparando dirigentes que não só conheçam os princípios que servem de fundamento à organização, mas que espiritualmente estejam integrados na verdade corporativa, fundada na doutrina social cristã, na experiência da história e nas exigências políticas e sociais do nosso tempo».

Necessidade da formação social e corporativa a que a proposta visa

do risco que haveria em que as ideias expostas, uma vez passadas para um texto constitucional, ficassem aí sendo letra morta, sem serem «sentidas, vividas, executadas», pois «as leis, verdadeiramente, fazem-nas os homens que as executam, e acabam por ser, na prática, por debaixo do véu da sua pureza abstracta, o espelho dos nossos defeitos de entendimento e dos nossos desvios de vontade» 2. E isso leva-o a proclamar «não se estar construindo nada de sólido fora de uma revolução mental e moral nos Portugueses de hoje e de uma cuidadosa preparação das gerações de amanhã» 3.

Três anos e meio mais tarde, em Dezembro de 1933, é a mesma ideia que se repete noutro discurso seu, já concretamente a propósito da organização corporativa, cujas bases haviam sido lançadas poucos meses antes: «Improvisar quadros, estatutos, sindicatos, corporações, não nos interessa; levar os interessados a assimilar os princípios, a ver o interesse da organização, a desejar servir-se dela para elevar o nível económico, intelectual e moral dos seus pares, isso é o que para o futuro da obra principalmente nos convém» 4.

Nos discursos proferidos por Pedro Teotónio Pereira, no período da instalação dos primeiros organismos corporativos (1933-1934), encontramos a cada passo expresso o mesmo pensamento sobre a necessidade de doutrinar as massas e de reformar a mentalidade dominante. Ao falar do papel das entidades patronais na organização corporativa, num discurso proferido em Fevereiro de 1934, o homem que teve a honra de ser o primeiro Subsecretário de Estado das Corporações não esconde o seu receio de ser por elas mal compreendido por falta de mentalidade adequada 5,

1 Ct. Posição Actual do Corporativismo Português, p. 21.

2 «A Grande Batalha Corporativa» (artigo de fundo do Diário de Diários de 4 de Abril de 1956).

ed. cit., p. 94, e Antologia, loc. cit.

4 Cf. «Os Delegados do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência e a Reforma Social», in Discursos, vol. e ed. cit., p. 278, e Antologia, p. 183. Em Abril do ano imediato, no discurso proferido na sua visita oficial ao Porto (27 de Abril de 1934), insiste de novo: «Revolução tão extensa e tão profunda, ou não chega a ser nada ou se opera pela lenta absorção de princípios novos que inspiram a vida dos homens, e estará tanto mais adiantada quanto mais a sentirmos dentro de nós mesmos». Cf. «O Espírito da Revolução», in Discursos, vol. e ed. cit., p. 317, e Antologia, p. 25.

5 V. A Batalha do Futuro. Organização Corporativa, Lisboa, 1937, p. 70: «Também não tenho ilusões de que, de entre as entidades patronais, muitas haverá que considerarão isto que