tavam a medicina, serviam a medicina; o essencial, escreveu certo dia, é a observação inteligente do homem e da história natural do ser humano.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Pautou a doença, como «função do indivíduo», e que «à noção de doença se sobrepõe a do conhecimento do indivíduo». Era pelos caminhos da anamnese que ensinava a checar à pessoalíssima equação de cada um, e enamorou-se da sua endocrinologia, porque através dela, podia atingir as «raízes mais finas e expressivas da personalidade».

Vozes: - Muito bem, muito bem!

, decompondo-lhe os elementos constitutivos, esclarecendo-o nas forças determinantes, estudando-o no mistério dos conflitos instintivos, na projecção social dos valores íntimos, até ajudando a que se compreenda, se melhore e se engrandeça.

Não admira, por isso, que Marañon fosse um espírito finíssimo, compreensivo, indulgente, rigorosamente lógico, com o seu saber naturalista. Se o Providência o tinha dotado de uma ampla bondade inicial, ele soube facetá-la e acomodá-la para aceitar e respeitar os critérios díspares. Marañon ensinava no Instituto de Patologia Médica, lugar obrigado para quantos cientistas passassem por Madrid; e os que viveram algum dia a lição daquele Instituto aprenderam bem a nobre humildade das opiniões. O que ficou pelo sen admirável livro Critica de la Medicina Dogmatica mostrou igualmente que em medicina não há lugar para dogmatismos pedantes e solenes.

O Sr. Alberto Cruz: - Muito bem!

O Orador: - A medicina é feita do verdades transitórias ou de pedaços de uma verdade cujo conteúdo se alarga na medida em que irrompem novos conhecimentos.

Pelos seus valores a pátria não lhe regateou as honrarias: a pujança, científica deu-lhe na Academia das Ciências Exactas o lugar que ficara vago desde Cajal: a excelência da medicina colocou-o cedo na Academia de Medicina; a beleza do estilo abriu-lhe as portas da Academia da Língua; o cuidado das investigações históricas levou-o para a Academia da História; e a original interpretação de El Greco engalanou-lhe a entrada na Academia das Belas-Artes.

Mas, para além das próprias fronteiras, o Prof. Marañon, que muito andou, que tanto viajou, que afanosamente participou em conferências e congressos, teve o reconhecimento de figura cimeira da medicina mundial; várias Universidades, desde as da América Latina à de Paris, o enobreceram com graus académicos. E até entre nós o sábio endocrinologista recolheu a sua exaltação como doutor honoris causa, primeiro, há catorze anos, pela Faculdade de Medicina do Porto, depois, e ainda há cinco meses, pela Faculdade de Medicina de Coimbra. Foi ali, na nossa velha cidade universitária, que Marañon recebeu a sua última consagração oficial, numa cerimónia cheia de austeridade e de pompa e na qual os seus méritos de cientista se glorificaram a par das suas riquezas do humanista.

Para nós ainda conta outra razão de luto - Marañon era um grande amigo de Portugal. Sempre com a maior alegria ele via entrar médicos portugueses no seu serviço; muitos lá aprenderam ou se aperfeiçoaram o alguns tiveram a honra de preleccionar na sua cátedra. Por numerosos vezes até nós veio trazer a sua palavra brilhante e os ensinamentos da sua longa prática. Era uma carícia ouvi-lo elogiar as belezas da nossa terra, quando por ela circulava. Lembro-me de o trazer da fronteira para o Porto num formoso dia de Primavera; os campos do Minho pareciam em festa garrida e, ao rolar pela estrada ladeada por flores sem fim, quase um roseiral contínuo, repetia embevecido: «É divino o vosso Portugal!», e a par da nossa natureza Marañon firmava, como deixou em certo passo, que os «largos anos de amor a Portugal» eram também «de estudo da sua humanidade e do seu espírito, da sua realidade viva, da sua ciência e da sim arte».

Em 1954, por motivo da festa de consagração da medicina, o Prof. Marañon pronunciou, na Sociedade do Geografia, um memorável discurso e disse carinhosamente:

Conheço Portugal e amo-o, com entranhável amor. Pelo meu retiro de Toledo passa o mesmo Tejo, que morre, largo como um mar, aqui em Lisboa; e parece-me que as suas águas, que enlaçaram o espírito de Camões e o de Garcilaso, servem agora, como sempre, de laço vivo, a nossa amizade e as nossas comuns preocupações.

Estão ainda nos ouvidos de quantos assistiram à soleníssima cerimónia as palavras que Marañon dirigiu a Salazar: «Saúdo de um modo especial o Sr. Presidente do Conselho, a quem não quero chamar somente com o seu título, mas com o seu nome, ao Professor Salazar; porque, para mim, a sua qualidade de homem e a sua qualidade de universitário está por cima da sua alta representação social; já que a sua grande obra política se deve, não a presidir ao Governo de Portugal, mas que o Governo de Portugal esteja presidido, precisamente, pelo Mestre Salazar». Foi nessa oportunidade que Marañon conheceu pessoalmente o nosso Presidente do Conselho, na sequência lógica da grande admiração que lhe votava.

Tive eu a felicidade de assistir ao diálogo que por mais de uma hora se manteve entre aqueles dois eminentes espíritos. E sabe-mo bem revelar aqui um episódio inédito: enquanto regressávamos ao hotel e Marañon me confessava a evidência da forre intelectualidade do Salazar, perguntou estranhado:

Mas, então, é assim que vive este homem, uma criada de avental branco a abrir-nos a porta, ele próprio depois da entrevista nos acompanha até à saída da casa, sem um secretário, sem um ajudante, sem uma guarda, sem uma continência, sem armas em sentido, é assim, nesta modéstia, que vive o vosso Primeiro-Ministro?