O Orador:

O certo é que Luís Gonçalves se alistou no exército de Goa porque «não lhe sofreria o ânimo ficar numa terra» que tivera de receber «o último gemido da Pátria moribunda» e porque a índia era, nessa época, só único lugar onde encontrava gasalhado a antiga galhardia portuguesa».

Mas os homens talhados para grandes destinos nem sempre entram, desde logo, na senda luminosa.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Luís Gonçalves foi combatente temerário e na sua mão não vacilaram as armas de Portugal. Em todo o caso, a sua mocidade exuberante levou-o a desmandos censuráveis.

Alguém, no escrever sobre a personalidade de S. Paulo, perguntou o que é que nós, principalmente nesta época de mecanização e materialismo, pudemos saber daquilo a que outrora se chamava o a misterioso intercâmbio da alma com o Infinito?».

Que podemos saber da luta que se trava na mente de um homem «com os problemas transcendentais do destino humano», com «a desesperadora e aparente falta de sentido da vida», no caminho para «a certeza súbita, talvez por uma revelação repentina, de que, a despeito de tudo, «por baixo estão os braços eternos», ou aquela voz que Pascal ouviu em certos acontecimentos, e que dizia: «Não poderias ter pensado em Mim, se já não me tivesses encontrado»?

Esse mesmo que formulou estas interrogações aquietou-se na conclusão de que em tal assunto o espírito sopra conf orme deseja, como se fora sobre terreno sagrado, em que devemos ficar silenciosos, e até caminhar descalços, à semelhança do que fez Moisés ao aproximar-se da Sarça Ardente.

Luís Gonçalves, aquele soldado da índia de vida tão licenciosa, que chegou a ser pedra de escândalo para os seus camaradas, trazia em si o carisma das aluías predestinadas para as ascensões sublimes. Tu l vez não tivesse ouvido ainda, decisivamente, aquela voz que .Pascal escutaria mais tarde, ou não tivesse sido deslumbrado pelo clarão que convertera Paulo de Tarso às tarefas da santidade. Mas as suas forças vitais deveriam trabalhar já no sentido da sua transfiguração e o seu pensamento estava com certeza apto a raciocinar sem termos de eternidade».

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Ao abordar, de relance, estas profundas questões do ser, depois de observar que andámos, muito tempo enganados acerca do papel da inteligência, desprezando a substância do homem e julgando que o egoísmo hábil podia exaltar o espírito de sacrifício, Antoine Saint-Exupéry conclui, com impressionante naturalidade:

A semente do cedro, quer queira, quer não, há-de dar cedro. A semente da silva há-de dar silva.

Volto ao biógrafo eloquente, na parte em que o mesmo anota não ter a Providência jamais perdido de vista o mancebo açoriano para o penetrar com um raio de graça e transformá-lo em modelo de virtude:

E então que Luís Gonçalves troca o nome de baptismo pelo de Bento de Gois e despe a armadura coruscante dos combatentes para vestir a humilde roupeta dos obreiros da civilização.

Quer dizer: a semente do cedro, deu cedro.

A entrada da pequena Capela de Travancor construída pelos portugueses, marca o começo da senda luminosa que «o soldado de fortuna nas terras do Malabar», depois de ter implorado perdão para a sua turbulência pecaminosa, desejava percorrer com outro nome nada comprometido nas misérias do Mundo.

Por humildade, não passem de irmão coadjutor da Companhia de Jesus, então a grande ateadora da nossa acção missionária em todo o Oriente. Mas tomou a vida como um pleno sacerdócio. Assim, e pelos grandes merecimentos dia a dia provados, chegou a ser escolhido para na corte do Grão-Mogol Akbar colher benevolências e simpatias, e tal foi o êxito dessa sua missão, que o imperador abandonou o intento de conquistar a índia, deferiu o resgate de todos os portugueses, que tinha feito prisioneiros no assalto à fortaleza de Asirgarh, e os maometanos e hindus passaram a respeitar os missionários católicos.

Relevantíssimos serviços estes, que se impunham e impõem à gratíssima admiração da Pátria, mas a capacidade diplomática e missionária de Dento de Gois possuía fôlego para dar de si provas mais extraordinárias.

Haviam chegado à Europa referências a um reino porventura situado, algures, no Oriente, e onde vivia uma antiga cristandade.

Acumulavam-se as narrativas feitas por alguns viajantes, e o mistério, à medida que subia, mais despertava a curiosidade e a necessidade de saber onde ficava essa terra lendária a que tinham dado o nome de Cataio.

A viagem de Marco Polo pela Ásia Central não tivera outro fim que não fosse o de descobrir o misterioso país. Ingleses e holandeses ainda teimavam em igual propósito, e diz que Cristóvão Colombo abriu rumo mais ao ocidente, não para ir de encontro à América, mas para resolver o problema do reino invisível.

No entanto, e a despeito de todos os esforços, o mistério persistia, e até crescera na própria índia, onde o Visitador das Missões Nicolau Pimenta, nos princípios do século XVII, pensa numa viagem de exploração, que não tarda em promover, com os auxílios do Vice-Rei Aires Saldanha e até do próprio Grão-Mogol.

Mas quem seria capaz de se medir com os perigos e o alcance de tão árdua empresa?

Quem possuiria o valor, o esforço de ânimo, a arrojada competência?

Quem, sem outras armas que não fossem a Cruz e os Evangelhos, poderia ser o intrépido pioneiro?

Ninguém como o Visitador Pimenta conhecia melhor os seus missionários.

Havia um homem:

Havia Bento de Gois!

Obediente e resignado, forte e audaz, diplomata u conhecedor da língua persa, o mancebo açoriano foi, na frase de Ritter, «o encarregado heróico da difícil missão de abrir o caminho continental, então de todo desconhecido, da índia ao Cataio».