Interessa, pois, destacar o respeito que mereceu ao legislador a situação de facto de inúmeras farmácias.

Se no campo normativo podemos dizer que as ficaram assentes, mesmo considerando a existência de deficiências de pormenor, é chocante e atentatório da letra e espírito da lei o ambiente em que se vem processando quer a abertura de novas farmácias, quer a transferência de propriedade das existentes.

A fraude à lei atingiu proporções escandalosas.

Empregam-se os mais ardilosos, os mais subtil artifícios para iludir o conteúdo normativo do Decreto nº 23 422, mas, não poucas vezes, o despudor é tão grande que nem essa preocupação se acolhe as fazem-se com tal à-vontade que exalam imediatamente o característico odor dos negócios celebrados à margem da lei

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Actos simulados que são vexatórios quem os outorga, aviltantes de uma profissão pode ser útil quando prestigiada. Actos simulados cobrirem situações donde podem resultar graves e irreparáveis males para a saúde pública e que trarão inevitável descida no nível técnico da oficina de farmácia.

Aparência de cobertura legal em transmissões de propriedade de farmácias que foram adquiridas, quantas vezes, por pessoas sem competência, sem ética e moral.

Tantos e tão graves são os atropelos à lei que, 60 a 70 por cento das farmácias são propriedade de farmacêuticos, e dessas grande parte vivem contralegam.

Chegar-se a este ponto representa, antes de passividade, quando não imperdoável desleixo do Executivo, zelador, por definição, do cumprimento das leis.

Como de costume, e também nesta matéria, deu-se largas à nossa habitual transigência.

E nem sempre se torna fácil, em casos paralelos distinguir entre excessiva brandura, contemplação com situações em fraude à lei e conivência.

É neste clima que, em 1962, o Governo envia à Câmara Corporativa a proposta de lei sobre propriedade da farmácia, da autoria do Ministro Martins de Carvalho.

Reconhece-se no seu preâmbulo que o Decreto n.º 23 422 foi realmente ineficaz por falta de ré, regulamentação adequada e, assim, não se verificou a passagem para os farmacêuticos da propriedade da farmácia - objectivo tido como essencial para pôr cobro ao caótico ambiente.

Ora aquela proposta visava principalmente manter o princípio-base do decreto de 1933, propondo-se ir mais longe, pois queria assegurar aos proprietários não farmacêuticos preço justo a obter na venda da farmácia.

Por outro lado, e procurando reintegrar na ordem jurídica todas as outras farmácias em situação ilegal, usava-se a habitual benevolência, agora traduzida num período transitório bastante largo para o efeito.

A determinação do Governo naquela proposta, ao reafirmar a solução tradicio nal, vem impedir perigos que ameaçariam a farmácia portuguesa na hipótese de ser acolhida a tese da «livre propriedade».

O Ministro Martins de Carvalho afirmou, em de rações prestadas à Revista Portuguesa de Farmácia, «com a limitação da propriedade das farmácias aos farmacêuticos se procura evitar a excessiva concentração capitalista, traduzida na formação de trusts dominadores do comércio de medicamentos».

Anula-se, por este meio, a possibilidade de qualquer empresa produtora de especialidades farmacêuticas fornecer directamente o público através do controle de um terço das farmácias existentes. De forma categórica, a tese governamental impede o acesso dos médicos ou profissionais da «arte de curar» à propriedade da farmácia.

Mas não se limitou a estes argumentos em defesa do princípio eleito. É sabido que em redor do problema se agitam interesses de todos os profissionais de farmácia e convém não esquecer o facto de os ajudantes de farmácia pretenderem tam beneficiados por uma série de medidas protectoras que não souberam ou quiseram aproveitar devidamente as facilidades concedidas para a obtenção do diploma das escolas superiores e Faculdade de Farmácia.

Ainda dentro da linha de pensamento do Ministro Martins, de Carvalho, há aspectos que reputo fundamentais para a orientação geral do futuro da farmácia e que, também por isso, reforçam a posição assumida pelo Governo.

Cada vez mais insistentemente, ergue-se o coro dos que clamam contra o exagero do emprego, hoje verificado, do remédio-série. É evidente que tal ideia nem é defendida nem deve aplicar-se com extremismo. Simplesmente se reconhece necessidade de individualizar o medicamento, tornando-o adequado ao doente.

Tal significa a tendência moderna que se desenha no sentido do regresso ao medicamento manipulado na oficina de farmácia. E a farmácia portuguesa não está estranha a esta orientação.

Verifica-se, também, considerável alargamento dia actividade farmacêutica, que se vai completando com laboratórios de análises, facto de que resultam evidentes vantagens para as populações, mormente na província, onde a instalação autónoma de um estabelecimento dessa especialidade nem sempre terá viabilidade económica.

O que venho referindo, e que é, aliás, a linha mestra da proposta do Governo presente à Câmara Corporativa, «marca uma orientação geral» que se interpreta como afastamento, cada vez maior, da concepção da farmácia como simples estabelecimento comercial.

Ninguém de boa fé pode deixar de reconhecer que na farmácia se realizam também actos comerciais. Mas não apenas estes. Tudo o que vai além disso, tudo o resto - uma função específica do exercício da profissão do farmacêutico, com as suas implicações deontológicas, morais, técnicas e científicas -, ultrapassa e sobreleva esse aspecto puramente secundário que é o mercantil.

Vozes: - Muito bem!