Projecto de decreto-lei n.º 516

Colheita de órgãos e tecidos nos cadáveres De há muito que se vem sentindo entre nós, com premência crescente, a necessidade de utilizar, em certas condições, os órgãos e tecidos das pessoas falecidas.

Trata-se de problema hoje largamente considerado nu legislação de muitos países, merecendo especial citação a lei francesa de 20 de Outubro de 1947, a lei espanhola de 18 de Dezembro de 1950, o decreto suíço de 20 de Dezembro do mesmo ano, a lei inglesa de 26 de Julho de 1952 e a lei italiana de 3 de Abril de 1957.

E ao assunto se referiram largamente os pareceres da Procuradoria-Geral da República de 27 de Novembro d Só uma adequada regulamentação permitirá resolver um número importante de casos que, de outro modo, não têm solução clínica. Em Abril de 1959, a Sociedade de Ciências Médicas calculou em cerca de 2000 o número de cegos que, no nosso país, poderão recuperar a vista graças à ceratoplastia. Em 1957 morreram em Portugal, por queimaduras, 517 indivíduos, parte importante dos quais poderia ter sido salva se funcionassem serviços apropriados para enxertos de pele. E, embora sem elementos tão precisos, pode igualmente dizer-se que será também bastante elevado o numera de casos em que os outras enxertos possíveis, especialmente os de ossos, darão resultado de grande interesse.

Compreende-se a natural reacção que medidas desta natureza podem causar em sectores menos esclarecidos da opinião pública. Mas o simples facto de 2000 [...] poderem recuperar a vista é por si só suficiente para legitimar uma regulamentação adequada, conforme, aliás, a classe medica, várias das suas organ izações científicas e a grande imprensa de há muito vêm a solicitar.

Aliás, à licitude da extracção e aproveitamento da córnea dos cadáveres se referiu expressamente o papa Pio XII, que considerou, sob certas condições, que o presente projecto respeita, nada haver a objectar a elas sob o ponto de vista moral e religioso: o paciente beneficia com frequência desses aproveitamentos e o falecido não é lesado em nenhum bem.

No presente decreto-lei fica-se, em vários aspectos, bastante aquém do que se pratica noutros países. Todavia, já se abrem vastas possibilidades; e mais fácil será, de futuro, adaptar a lei às realidades nacionais e às exigências do meio, em matéria de transplantação para vivos de órgãos e tecidos de pessoas falecidas.

Decerto não faltará quem afirme que se quer ir depressa de mais; e não há-de também faltar quem considere ter-se sido prudente em excesso. Porém, o problema é delicado, envolve toda uma gama complexíssima de situações morais e de hábitos arreigados, e não parece conveniente ir-se mais longe na fase inicial.

No presente projecto procura-se, portanto, aquele justo mas difícil equilíbrio entre o respeito ancestral que ao homem merece, o cadáver de outro homem e as imposições científicas que, sem menosprezo por aquele respeito, obrigam a utilizar os cadáveres humanos para benefício dos diminuídos, dos feridos e dos doentes. O sistema previsto no presente decreto-lei resume-se aos seguintes grandes princípios: Qualquer pessoa pode livremente dispor do seu corpo, autorizando ou proibindo que nele se façam colheitas depois de falecer.