surge-nos tratado na lei como pessoa, se se quiser, presente ou passada.

Tudo quanto se deixa dito nos mostra a razão por que a maioria dos autores, se bem que apegados à concepção do cadáver como coisa, verse os problemas respectivos não a propósito das coisas, mas dos direitos relacionados com a personalidade.

E essa é, precisamente, a conclusão a que devemos chegar seja qual for a natureza atribuída ao cadáver, visto isoladamente, o regime jurídico dele só é compreensível quando integrado no conjunto dos problemas morais e jurídicos suscitados pela personalidade humana e por toda a sua projecção na ordem jurídica.

São bem conhecidas as controvérsias que tais problemas têm levantado, e as incertezas e dificuldades que hoje imperam em toda esta matéria. Esse estado da doutrina só revela, a nosso ver, a grande importância dos problemas em causa se pudéssemos tomar a letra a asserção, feita pelo Prof. Cabral de Moncada (23) acerca deste tema, de que tudo se pode sustentar quando se trata de construções puramente teóricas como estas, ou sequer não oremos que a missão do jurista seja apenas a de erguer construções lógicas estranhas à realidade, como quem compõe figuras geométricas com peças separadas umas das outras, a elaboração doutrinal destina-se a revelar a verdade jurídica, e, ainda que esse fim possa sei demandado por meio de técnicas diferentes ou por linhas de pensamento variáveis, o objecto em si não muda e nele há-de residir o critério para apreciar os resultados obtidos.

O problema tem tanta mais acuidade quanto não basta, em questões deste tipo, destrinçar o verdadeiro do falso, como sucederia em muitos sectores das, ciências positivas o homem não é apenas um ser natural, mas também cultural - as ideias, os hábitos, os exemplos, incorporam-se no seu sei e condicionam-lhe o comportamento, por isso os erros, em matérias deste género, uma vez difundidos e assimilados, adquirem realidade interna, instalam-se na vida do homem como vírus que lhe altera os tecidos ou neles provoca reacções anormais, e frutificam em modos de procedei contrários à realidade profunda da personalidade.

E, bem a nosso pesar, temos de reconhecer que é isto o que se tem passado com o tema que nos ocupa.

A teoria dos direitos sobre a personalidade tem estado entregue a toda a espécie de abstracções e ao mais intenso tecnicismo. Daí aquelas infindáveis controvérsias, em que a distância se aduzem os mesmos argumentos sem se consegui convencer os adversários, daí, também, aquela estranha tendência para se assimilarem realidades que o senso comum impõe como diferentes, ou para cindir outras cuja essência é manifestamente unitária - para cindir até o próprio homem, não obstante a unidade essencial do seu sei.

Não admira, pois, que Windscheid, posto que só em razoo de os conceber como direitos absolutos, aproxime perigosamente os direitos sobre a pessoa própria dos direitos leais, e diga que a vontade é decisiva quanto a pessoa própria como nos direitos reais o é quanto a coisa (26). Nem que Rogum vá mais longe e sustente que os chi eitos reais e os potestates têm a característica comum de serem poderes sobre entes considerados como coisas mortes, os homens, objectos das segundas, são atingidos por elas com abstracção da sua alma - os direitos de potestade e de família (que para este autor constituem os direitos sobre a pessoa de outrem, isto é, sobre pessoa alheia) recaem no homem encarado como coisa, e não suo mais do que direitos reais, especializados pelo seu objecto(27). Nem sequer que Carnelutti ainda seja mais ousado, e afirme que o homem funciona umas vezes como pessoa e outras como coisa, e que esta última é a posição dele quando objecto de direitos sobre pessoa própria ou sobre pessoa alheia (28).

Toda a distância que possa mediar entre estes autores, seja quanto ao valor relativo deles, seja quanto ao estado de adiantamento da doutrina jurídica nos lugares e tempo onde escreveram, só serve paia acentuar como neste terreno movediço podem brotar as mais estranhas e perigosas ideias Perigosas, sim, pois - por inócuas que sejam as intenções dos autores e por mais restritos que se apresentem os sectores em que eles se movem - é óbvio que as teses deste tipo criam um clima próprio para a prática evoluir efectivamente no sentido de o homem deixar de ser homem e passar a sei visto, na realidade, como coisa.

E a prática não se tem feito rogada. Muito longe, embora, de se descortinar qualquer nexo de causalidade directa entre cada opinião e cada facto, a verdade é que, paralelamente às hesitações e malabarismos da doutrina, as ideias correntes e os factos da vida prática têm agravado consideràvelmente a situação do homem dos direitos sobre a pessoa própria, baluartes da segurança individual, passou-se ao poder de dispor do próprio corpo e a tendência para legitimar os contratos mais estranhos e para mercadejar com o próprio corpo, e dos direitos sobre a pessoa alheia, restritos a aspectos essenciais da sociedade e do homem, degenerou-se para toda a espécie de aproveitamentos ou utilizações do homem como simples objecto.

(23) Ob. cit., vol I, nota n.º 2 à p. 74.

(24) I Diritti delia Personalita, p 26

(25) Die Handlungelahighet, I, 1901, p. 310, criado por De Cupis, ob. cit., p. 24.

(26) Diritto delle Pandette, od e vol cits , p 177

(27) La Règle de Droit, F Rouge, Libraire-Éditeur, Lausana, 1889, pp 258 o 259.

(28) Toria General o del Diritto, 3.ª edição. Soc Ed del «Foro Italiano», Roma, 1951, pp 125 e segs Mais adiante (infra, nota 85) daremos uma notícia mais completa desta teoria