Com as pessoas passa-se, mutatis mutandis, fenómeno semelhante. A pessoa humana concreta tem o primado da ordem jurídica subjectiva e reivindica do direito a defesa dos seus nos intrínsecos. Se eventualmente estes fins se achai em consubstanciados indirectamente em realidades que não sejam pessoas mas participem da dignidade delas, por extensão, essas realidades só poderão receber do direito tratamento análogo ao das pessoas, e nunca aquele que é próprio das coisas.

As pessoas e as coisas existem, por isso, em planos essencialmente diferentes e projectam a sua condição para além das suas fronteiras concretas, sem que jamais possam encontrar-se E o direito, ao escolher o tratamento a que há-de sujeitar determinado ser, deve, antes de mais, decidir se ele é extensão das pessoas ou simples coisa,, e só depois o poderá regulamentar.

Esta é, em resumo, a natureza do cadáver é uma realidade que, não sendo pessoa, se acha submetida aos fins intrínsecos das pessoas, e há-de, consequentemente, ser regida pelos princípios relativos as pessoas, em tudo o que seja adequado à sua configuração particular.

E não é difícil verificar-se a verdade dessa hipótese.

Conforme deixámos dito, as figuras a que chamámos direitos a personam caracterizam-se, antes de mais, pela destinação a fins intrínsecos. Ora são também tipicamente intrínsecos os fins dos direitos geralmente admitidos a respeito do cadáver.

Seguindo-se a hierarquia desses fins, devemos mencionar em primeiro lugar os direitos que respeitam ao culto religioso. O cadáver é, como se sabe, objecto de culto em virtude do carácter de sagrado desde sempre atribuído a morte, e por esse motivo sempre se tem reconhecido que a prestação de honras religiosas ao cadáver constitui um direito e um dever para os vivos.

Na vida religiosa do cristianismo, de particular interesse para nós, todos os actos relativos à inumação do cadáver são rodeados e absorvidos em actos de culto, e todos se destinam portanto a fins intrínsecos das pessoas a homenagem a Deus, a dignificação do cadáver como corpo do homem e a oração pelo falecido

Sendo assim, devem igualmente ser intrínsecos os fins dos direitos respeitantes a essas honras fúnebres, direitos que, segundo os aspectos por que são olhados, pertencem às autoridades religiosas (como implicitamente reconhece o artigo 48 º da Constituição Política) e às pessoas de família do falecido e aos executores testamentários deste, aliás, nestes últimos casos, em seguimento e como complemento dos direitos, reconhecidos em vida ao indivíduo, de regular o próprio funeral [Código Civil, artigo 1899.º, n.º 1, e, por analogia, o Código do Registo Civil, artigo 244.º, n.º 1, e alínea o) do n.º 2. E mesmo quando essas pessoas se decidem por funeral não religioso, isto constitui manifestação de uma atitude fundamental acerca da orientação da vida e, posto que contrário às leis naturais e aos usos correntes, não deixa de ter em vista aquilo que se crê ou pretende apresentar como destino da própria pessoa.

Igualmente intrínsecos são os fins respeitantes à piedade familiar que, além de se conjugarem e fundirem com os fins relativos às honras fúnebres, se estendem ainda à posse do cadáver e ao túmulo, à inviolabilidade deste, à defesa da honra do falecido, etc.

Finalmente, os direitos respeitantes à destinação corrente e ao eventual aproveitamento do cadáver para exames forenses, autópsias, estudos médicos, etc embora sejam os que mais se aproxima m de perspectivas utilitárias, têm, apesar de tudo, fins intrínsecos das pessoas, visto serem conferidos em atenção a um bem comum em que o falecido participava e que só através do cadáver pode realizar-se (repressão de crimes, defesa de direitos pessoais da família, aperfeiçoamento da medicina para alívio dos doentes, etc).

A enumeração destes direitos põe logo em evidência também a estreita ligação destes com direitos e deveres propriamente ditos, como é característico dos direitos paia com as pessoas. Para se ver que essa é a verdade, basta pensar-se que muitos deles têm praticamente o mesmo objecto e fim que outros direitos e deveres que, em vida do falecido, eram reconhecidos a este ou existiam para com ele Assim, alguns direitos sobre o cadáver, como os respeitantes às honras fúnebres, surgem em substituição de direitos do falecido sobre a mesma matéria. A família, por exemplo, terá o direito de regular o funeral na medida em que o defunto o não tenha feito, e pode característica própria do jus panorama a referência à personalidade no seu conjunto. Quase poderá dizer-se que, no tocante ao cadáver, esta característica se apresenta com especial relevo, o que bem se compreende, porquanto, não tendo ele fins próprios e interessando ao direito como extensão da pessoa, necessariamente os poderes e deveres que lhe dizem respeito hão-de ter em vista, acima de tudo, a própria pessoa, e, na verdade, desde os direitos e deveres relativos ao culto até aos exames e estudos médicos, o que está em causa é sempre, primordialmente, o homem na sua integralidade.

Como corolário das considerações anteriores é também própria dos direitos sobre o cadáver a necessidade de se subordinarem ao respeito da pessoa como tal - excluindo-se, nomeadamente, actos desumanos e indecorosos - e ao respeito dos outros fins intrínsecos. E especialmente acerca dos fins de aproveitamento forense ou escolar do cadáver que este problema pode surgir na prática e, conquanto infelizmente seja notório que muitos abusos se cometem em tal matéria, o certo é que as leis vigentes e as normas deontológicas, com maior ou menor consciência, consagram essa característica. Deve recordar-se, por exemplo, que as leis relativas ao ensino médico expressa-