circunscrito ao fim respectivo, aceite como intrínseco e merecedor de protecção, porquanto é necessário que nos próprios actos de execução se observe o respeito devido à dignidade das pessoas e nos outros fins intrínsecos, em cuja satisfação o exercício desses direitos não deve interferir.

Estes são os princípios à luz dos quais devemos apreciar a matéria do projecto em exame o aproveitamento de tecidos e órgãos de cadáveres para fins terapêuticos ou de investigação científica.

se se, mesmo na hipótese de serem intrínsecos, esses fins se opõem a outros fins intrínsecos do falecido ou de outras pessoas, em condições de os tomar condenáveis ou, quando menos, de os sujeitar a limitações ou precauções especiais.

Por outro lado, o objecto do projecto envolve problemas relativos a urgência com que deve ser feita a colheita dos tecidos e órgãos, e que resulta, em termos gerais, da necessidade de ela ser efectuada antes de decorrer o prazo normal de prevenção contra a morte aparente.

Comecemos por considerar o problema do carácter intrínseco ou extrínseco dos fins a que se destina o aproveitamento projectado.

Esses fins são, como se disse, fins terapêuticos e fins de investigação científica. Comecemos por estes últimos, em relação aos quais o projecto apresenta menos novidade, e que, por isso mesmo, são menos susceptíveis de suscitar dúvidas.

O projecto não apresenta orientação claramente definida ao delimitar os fins de investigação, pois se refere, por vezes, a esses fins sem qualquer limitação, enquanto em outros casos os restringe a investigação relacionada com a técnica dos enxertos. A análise desse aspecto pertence, porém, à disc ussão do projecto na especialidade, e por isso vamos considerar o problema perante os fins de investigação em si mesmos, independentemente das limitações que, no pormenor da regulamentação, se lhes possa impor.

É claro também que aqui consideramos apenas os fins de investigação científica na medida em que esta seja necessária ou útil para o desenvolvimento da medicina humana e para o treino dos respectivos práticos. Outras investigações, nas quais se utilizasse o corpo humano ou alguma das suas partes como simples instrumento ou matéria-prima, seriam condenáveis e deveriam repudiar-se firmemente. Os fins em relação aos quais se põe o problema que vamos considerar e que, obviamente, estão no pensamento do projecto são os fins relacionados com a ciência e a prática médicas.

Considerando-os nestes limites, e abstraindo por agora dos problemas resultantes da urgência das colheitas de tecidos e órgãos, poderemos dizer que os fins de investigação científica não são novos, e não suscitara dúvidas sérias.

Desde há muito que se aceita como indiscutível a necessidade de se conhecer o corpo humano para a preparação dos médicos, como meio indispensável para o tratamento dos doentes, e ainda a necessidade de se aproveitar o cadáver para o treino dos práticos, treino que, por outro modo, teria de fazer-se no corpo de pessoas vivas, com todos os danos e toda a crueldade que daí poderiam advir.

E é evidente que, admitida a necessidade desses estudos para o aperfeiçoamento da medicina, logicamente eles se justificam pelos motivos que fundamentam o

próprio tratamento dos doentes, assunto que consideraremos mais detidamente ao versar o problema dos fins terapêuticos.

Por agora basta-nos recordar que o aproveitamento dos cadáveres para estudo dos médicos se acha consagrado tanto pelo direito como pela moral e que, ainda há anos, foi expressamente reconhecido como lícito pelo Papa Pio XII, no discurso de 13 de Maio de 1956, no qual, precisamente, se ocupou do problema dos enxertos de tecidos de cadáver em corpos vivos. Depois de salientar o valor do cadáver, o Sumo Pontífice põe em evidência que não contraria o respeito que lhe é devido a aplicação do cadáver a certos fins humanos, entre os quais se conta exactamente o de estudo e ensino médicos. « É igualmente verdade - ensina o Papa - que a ciência médica e a formação dos futuros médicos exigem um conhecimento detalhado do corpo humano e que necessitam de um cadáver como objecto de estudo». (110)

Não se afigura legítimo, por conseguinte, suscitarem-se quaisquer dúvidas acerca da licitude do aproveitamento do cadáver para fins de ensino e de investigação médicos, e o mais que se pode dizer aqui é que, segundo se crê, as investigações para que podem interessar as colheitas de tecidos ou órgãos, efectuadas ao abrigo do diploma projectado, são de natureza a atingirem a integridade do cadáver em escala muito inferior à de outras investigações, nome adamente às que se compreendem no estudo da anatomia.

A outra ordem de fins a que o projecto destina - aliás, a título principal - os tecidos e órgãos colhidos em cadáveres e que temos de considerar com maior atenção respeita ao aproveitamento de tecidos e órgãos em enxertos em corpos vivos, destinados a corrigir deficiências ou, inclusivamente, a evitar a morte.

A nosso ver não pode pôr-se em dúvida o carácter intrínseco destes fins.

Na concepção cristã, à sombra da qual nos acolhemos o sofrimento é dos traços constantes da condição presente (...)

(110) V tradução portuguesa in Acção Medica, ano XXI, N.º 81, p. 24.