sentimentos louváveis, mas muito inferior aos males que se pretende evitar com os enxertos e, em qualquer caso, exigido pelo bem comum e pelo dever de caridade para com o próximo.

Não deve desconhecer-se, no entanto, a especialidade e importância dos aspectos postos em evidência, pois eles podem influir, até, nos pormenores da regulamentação. É óbvio, por exemplo, que as perturbações referidas podem ser mais ou menos intensas segundo o local da operação (a perturbação será manifestamente superior se ela for efectuada numa casa particular, em plena intimidade da família) e, conforme a natureza respectiva, há tecidos cuja colheita implica um aparato exterior susceptível de tornar a intervenção mais chocante do que em outros casos.

À parte estes aspectos, não nos parece, porém, que a urgência da recolha envolva problemas capazes de tornarem a colheita reprovável em si mesma.

E, como se mostrou, os fins em causa podem prender-se directamente com o próprio aproveitamento ou constituir outras finalidades que devem ser coordenadas com ele. Esta distinção nos servirá, portanto, de base para a estruturação que pretendemos fazer.

O aproveitamento de cadáveres justifica-se, como deixámos dito, pelas necessidades do tratamento de doentes, necessidades que podem ser directas ou indirectas, conforme o fim em causa for um objectivo terapêutico ou a investigação científica. A satisfação dessa necessidade constitui exigência do bem comum, por força da equidade e da justiça legal, e ainda exigência dos deveres de caridade e de justiça de cada membro da comunidade para com os seus semelhantes.

Os direitos relativos ao aproveitamento do cadáver têm, por isso, como todos os outros que incidem sobre este, natureza comunitária e emergem de uma exigência do bem comum que se dirige a todos os membros da comunidade em geral, mas não a qualquer deles em particular.

Daqui resulta que, por parte da comunidade, pode falar-se num direito ao aproveitamento dos cadáveres. Mas, por parte dos membros da sociedade, tomados individualmente, não corresponde a esse direito uma obrigação especial propriamente dita a necessidade que aquele direito se destina a satisfazer é apenas a necessidade de algumas pessoas, vista pelo prisma do bem comum, para a qual basta a utilização de alguns cadáveres, sem particular determinação destes, e todos estes aspectos conduzem à conclusão de que o direito da comunidade ao aproveitamento tem como contrapartida um daqueles deveres comuns dos membros da comunidade, não especialmente encabeçado em qualquer deles. Não implica, por conseguinte, uma relação jurídica concreta com qualquer pessoa determinada.

Neste mesmo sentido se pronunciou Pio XII, ao afirmar, acerca da colheita de córneas, que «a não ser que as circunstâncias imponham uma obrigação, é preciso respeitar a liberdade dos interessados» e que, «habitualmente, o caso não se apresentará como um dever ou um auto de unidade obrigatório» (124).

Desse dever comum sem sujeito individualizado resultará, para cada membro da sociedade, por um lado o direito de dispor do seu próprio corpo para cumprimento de tal dever, e, por outro lado, o direito de obstar, por decisão própria, que o seu corpo seja objecto de aproveitamento, visto que só reconhecendo-se relevância a essa decisão se poderá respeitar a liberdade e espontaneidade do cumprimento do dever em causa.

Para além do próprio indivíduo cujo corpo se pretende utilizar, nenhuma pessoa, como particular, se poderá arrogar o poder de dispor dele. Não nos parece que, a título particular, se possa reconhecer aos médicos a faculdade de utilizarem livremente os corpos de pessoas falecidas, e nem mesmo à família deve reconhecer-se tal poder - o fundamento da utilização de cadáveres reside no bem comum e no correlativo dever geral sem sujeito individualizado, e por esse motivo o direito de dispor de um corpo concreto só pode pertencer à própria comunidade (em princípio sujeita à necessidade de oferta espontânea) e à própria pessoa a quem pertence esse corpo.

Das palavras de Pio XII, há pouco transcritas, infere-se, todavia, a possibilidade de se apresentarem circunstâncias que imponham a obrigação de se suportar o aproveitamento do cadáver. É esse, aliás, um fenómeno observável a respeito de todos os deveres comuns não encabeçados em indivíduos determinados e que dá lugar àquelas requisições de pessoas ou de coisas a que, de um modo geral, se pode dar o nome de mobilização.

Relativamente ao aproveitamento do cadáver poderia justificar-se a mobilização, por exemplo, por efeito de uma grande calamidade pública que exigisse apreciável quantidade de sangue ou de pele, e ainda em consequência do facto de todos os membros da sociedade se recusarem sistematicamente a prestar o seu corpo para a satisfação das necessidades comuns.

Temo-nos referido às situações individuais que podem corresponder à exigência do bem comum no tocante ao aproveitamento de cadáveres, mas o problema deve encarar-se também pelo aspecto das pessoas que hão-de beneficiar com esse aproveitamento.

O fundamento desse benefício é, também aqui, o bem com um e as correlativas exigências da caridade e da justiça legal. Mas, assim como o dever de prover a esse bem comum não tem sujeito individualizado, assim também parece não serem de reconhecer-se direitos concretos àquele benefício. Basta pensar-se em que, sendo esse benefício limitado às necessidades e às possibilidades (...)

(124) Citado discurso de 13 de Maio de 1956, no lugar referido, p. 24.