(...)tivo de interesse público - trata-se de um afloramento daquele princípio, exposto no n.º 31, segundo o qual excepcionalmente se pode admitir a «mobilização» de cadáveres, em nome do bem comum, o que é conveniente ser consagrado a par da regra do respeito pela proibição do falecido, a fim de se prevenir o risco da recusa sistemática da concessão do cadáver e até, simplesmente, para evitar que se crie ambiente favorável a essa recusa.

O artigo 6.º, inteiramente novo, regula o caso de o falecido ter autorizado a colheita. A doutrina aí condensada acha-se justificada no n.º 37 deste parecer.

Fixados assim, nos artigos 4.º a 6.º, os princípios relativos à hipótese de o falecido ter manifestado alguma vontade a respeito do possível aproveitamento do seu corpo, o artigo 7.º do texto proposto, paralelamente ao artigo 3.º do projecto, permite a recolha de tecidos ou órgãos no caso de não haver proibição nem autorização do defunto, e de também faltar a oposição da família, desde que o óbito se haja verificado em determinados estabelecimentos.

A orientação do texto proposto é, fundamentalmente, análoga à do projecto, mas o melindre do assunto aconselha a que se ponderem alguns dos seus aspectos mais importantes.

Como atrás se referiu, em princípio o projecto, tal como o texto desta Câmara, consagra a regra da voluntariedade. Neste caso de faltar a manifestação de vontade por parte do falecido, ainda esse princípio é respeitado, pois, como se deixa dito no n.º 31, o direito de aproveitar o cadáver pertence directamente à comunidade, como contrapartida de um dever comum, não enraizado especialmente em qualquer dos membros daquela, de suportar essa utilização, daí resulta que, propriamente, a vontade individual não intervém nesta matéria para legitimar a colheita em si mesma (visto ela se fundar naquele direito da comunidade), mas sim para individualizar a actuação desse direito pela escolha de alguma das atitudes que aquela natureza do dever em causa faculta a cada indivíduo - autorizar ou recusar que recaia no seu corpo o aproveitamento devido por todos os membros da comunidade em conjunto, mas por nenhum em particular. Quando o falecido não autorizou nem proibiu a utilização do seu corpo, quando ele se absteve em vida de exercer o direito de tomar uma daquelas atitudes, a comunidade fica, em princípio, liberta de qualquer obstáculo e pode exercer o seu direito livremente. Esse direito pode, todavia, entrar em concorrência com outros, nomeadamente com os direitos da família, e, se a esta não deve facultar-se a iniciativa da colheita, não se lhe pode negar o direito, por si independente da atitude passiva do falecido, de se opor àquela intervenção, e é precisamente essa a solução adoptada - a recolha poderá efectuar-se se a família se não opuser. E, para que não se tome ilusória a possibilidade dessa oposição em virtude da urgência com que se tem de efectuar a colheita, permite-se no texto dequado ao bem comum e ao respeito devido a outros fins intrínsecos que estejam em causa, nomeadamente os que se prendem com a piedade familiar. Ora, no aspecto do bem comum, não há dúvida de que os cadáveres dos doentes falecidos nos hospitais (especialmente em instalações não particulares) são os que oferecem as melhores condições encontram-se depositados em serviços que tomam prontamente conhecimento do óbito, onde é conhecida a causa da morte e portanto o próprio estado do doente, e acham-se, por assim dizer, na posse desses serviços e portanto em condições de, para a colheita, não ser necessário devassar-se ou perturbar-se a vida da família. No que respeita aos fins desta, também é certo que seria muito mais grave a busca de cadáveres de pessoas falecidas fora de instalações comuns - agravar-se-iam todas as causas de atrito e de melindre resultantes da necessidade de os promotores de colheitas terem de entrar em domicílios ou locais particulares, de terem de abordar directamente a família e de perturbar o ambiente de intimidade e de luto que nela pudesse haver, etc.

A utilização dos cadáveres depositados em instalações comuns não difere, na realidade, do aproveitamento dos doentes internados em hospitais, para o ensino da medicina o treino dos médicos, como se pratica nos hospitais escolares e nos estágios noutros estabelecimento análogos, e o certo é que os doentes procuram muitas vezes esses hospitais, aceitando aquele aproveitamento, em razão das melhores condições de tratamento, da mais elevada categoria dos médicos, etc., como que dando, assim, tácito consentimento àquela prática. Isto mesmo se pode dizer também das colheitas efectuadas no cadáver de pessoas internadas fazem-se, no fundo, pela mesma razão e com o mesmo espírito com que se procede àquelas práticas de ensino e aprendizagem, e com que estas são aceites, pelo menos tacitamente, pelos próprios doentes e suas famílias.

Não são pois os pobres, como tais, os sujeitos à colheita os pobres falecidos fora dos hospitais também estão isentos dessas intervenções. São, sim, os internados em instalações comuns e por causa das condições mais adequadas aí existentes e do menor risco de perturbar as famílias interessadas.

Não pode ignorar-se, todavia, a circunstância de, no aspecto de facto, poder verificar-se a coincidência sistemática entre a situação de pobreza e a subordinação à (...)

(128) Cf. discurso de 18 de Maio de 1936, no lugar citado, p. 25.