Pergunta-se, porém: «Não têm utilização para fins terapêuticos e científicos tecidos como ossos, cartilagens, vasos, pele, etc., liofilizados?»
Só não devem ser recolhidos para tais processos técnicos de conservação, a fim de serem utilizados com aqueles fins, quando ofendam a moral, que, nos termos da Constituição Política portuguesa, é uma moral heterónoma, isto é, superior e anterior ao Estado - a moral cristã.
O Sr. Veiga de Macedo: - Muito bem!
O Orador: - A consciência humana sempre tem apresentado as normas de moral como obrigatórias, carácter este que, em muitas hipóteses, se apresenta com evidência muito superior à da obrigatoriedade de muitos leis jurídicas positivas.
Os fins a atingir com a utilização dos produtos biológicos humanos liofilizados são fins intrínsecos.
Logo, não é admissível a sua utilização para fins industriais, imorais ou fúteis.
O carácter intrínseco dos fins terapêuticos e científicos justifica a licitude e objectivos da colheita.
Não pode pôr-se em dúvida o fim intrínseco da terapêutica, pois que lutar contra o sofrimento é uma exigência do bem comum, em nome da justiça e da caridade, compartilhar com o sofrimento humano dos outros.
É dever de caridade e também de justiça concorrer para a conservação da saúde e a cura dos doentes.
Na encíclica Pacem in Térris consagra-se o direito de todos os homens à integridade física.
Também no que respeita à investi gação científica, não pode pôr-se em dúvida o seu carácter, intrínseco, dada a necessidade e utilidade para o desenvolvimento da medicina humana.
A colheita não pode ofender outros fins intrínsecos a que alguém tenha direito.
Quanto a um destes direitos, fica para a análise dos aspectos jurídicos a consideração do direito dos filhos-família.
Consagra a proposta em debate o princípio do consentimento do dador, como pressuposto dos direitos sobre as pessoas e indispensável à licitude do acto da recolha.
O consentimento prévio do dador, manifestado de forma expressa, é norma da deontologia médica neste campo.
A mesma norma vem prevista pelas legislações francesa, espanhola e inglesa.
Este acto prévio de consentimento é mais consentâneo com as regras da moral.
No mesmo seguimento destas regras da moral e, ainda, como princípio definido, a colheita para liofilização não tem natureza contratual; por isso que o autor da proposta consagra o princípio da gratuitidade do donativo, que não é incompatível com uma compensação para os dadores pelos prejuízos sofridos, conforme está, aliás, previsto legalmente para a transfusão de sangue.
2. Aspectos jurídicos. - Cai no conteúdo dos direitos de personalidade a disposição dos produtos biológicos humanos.
E, nos termos da lei civil portuguesa, é possível toda a limitação voluntária ao exercício dos direitos de personalidade que não contrarie os princípios da ordem pública.
Os direitos da pessoa sobre si mesmo não levantam quaisquer dificuldades a respeito da transfusão de sangue e, por consequência, da sua colheita, que não é contrária à dignidade pessoal, até porque para algumas legislações, como a italiana, é legítimo celebrar-se contrato acerca de partes que hão-de vir a ser separadas do corpo.
Há certos direitos cujo exercício incide, realmente, sobre pessoas, mas que pressupõem o consentimento destas; são disso exemplo aqueles cujo exercício se traduz em actos praticados sobre pessoas a título de violências desportivas, v. g. pugilismo, de tratamentos médicos, etc.
Em todos estes casos se estabelece o prévio consentimento da pessoa.
O problema, portanto, é o de saber se é ou não lícita a disposição da própria personalidade para a submeter a tais direitos.
Levanta-se, aqui, a questão da licitude da disposição do leite materno.
A colheita, mediante a disposição da interessada, não pode ofender outros fins intrínsecos a que alguém tenha direito.
Ora a amamentação é um fim intrínseco ou essencial a que a criança tem direito.
Logo, não é lícita a recolha do leite materno com ofensa dos direitos da criança em período de aleitação.
Por conseguinte, só é possível a contar do excedente que não faz parte do conteúdo do direito preferencial da criança.
Neste aspecto a proposta de lei apresenta uma omissão, que, contudo, pode
dizer-se regulada pela lei civil, como direito subsidiário.
Na verd ade, o pátrio poder é constituído pelo conjunto de direitos e deveres de que os pais são titulares e que devem exercer para prover às necessidades dos filhos, sustentando-os, educando-os, corrigindo-os e preparando-os para a vida.
De facto, o artigo 1879.º do Código Civil diz:
Compete a ambos os pais a guarda e a regência dos filhos menores não emancipados, com o fim de os defender, educar e alimentar.
Por sua vez, o artigo 1881.º, que consagra os poderes especiais ao pai, diz na alínea a):
Compete especialmente ao pai, como chefe de família, providenciar acerca dos alimentos devidos ao filho ...
E o artigo 1882.º, sobre os poderes especiais da mãe, prescreve na alínea b):
Compete especialmente à mãe velar pela integridade física do filho ...
Porque a lei civil garante, assim, o direito dos filhos à alimentação e pareça, por isso, dispensável a sua referência na proposta de diploma legal, a verdade, porém, é que convém ressalvar aí o modo de se fazer garantir esse direito indisponível.
Em síntese, concluímos:
b) Os direitos de disposição dos referidos produtos devem ser estritamente delimitados pelo fim a que se destinam;
c) Devem hierarquizar-se e coordenar-se conforme o grau de valor entre si;
d) Deve observar-se o respeito devido à dignidade das pessoas e aos outros fins intrínsecos, que não podem ser ofendidos pela satisfação através do exercício daqueles direitos.