Subo a esta tribuna com algum sacrifício, sem qualquer espécie de entusiasmo e com o espírito mergulhado em profundo cepticismo.

Direi rapidamente porquê.

Em primeiro lugar, ias doses maciças de oratória que têm vindo a caracterizar o período de antes da ordem do dia ultrapassam os limites da resistência humana e arrefecem o interesse pelos problemas a versar no período principal do funcionamento da Assembleia.

Vozes: - Muito bem !

O Orador: - Deste modo, determinadas questões de fundo, nomeadamente as que vêm a desaguar em leis, não conseguem obter a atenção que mereciam e as intervenções arriscam-se, não raras vezes, a ser pronunciadas em pleno deserto.

Por outro lado, o que se passou em torno da proposta de lei dos tribunais de família, como seguimento lógico do que tinha acontecido com as eleições das comissões parlamentares, constituiu um sintoma que permite um diagnóstico.

Parece haver ainda nesta Casa o culto da opinião do Governo só porque é Governo, o que pode levar a confundir independência com indisciplina e a perfilhar um conceito de colaboração que roça as fronteiras da vassalagem.

Neste quadro nem será difícil profetizar que todas as propostas de lei enviadas pelo Governo à Câmara receberão um carinhoso beneplácito, por mais distanciadas das realidades que se apresentem e por mais deficiências que contenham.

Se me for consentido, espero poder abordar, em breve, estes aspectos, na medida em que provocam interpretações desagradáveis e traduzem uma desvalorização política da Assembleia.

Então, e apesar das linhas explosivas do tema, será a altura de dizer tudo e de tentar obter o esclarecimento necessário do conteúdo dos conceitos de continuidade e evolução, em redor dos quais andamos todos a hesitar, divergir e recuar.

Por agora direi sómente que todos os factores apontados me deram a noção exacta da ineficácia da minha presente intervenção.

Se me aventurei a efectivá-la foi apenas pelo dever político que me liga ao meus eleitores, que começam a interpelar-me e a estranhar o meu silêncio. E, como só a eles tenho de prestar contas, sou obrigado a cumprir o encargo. Só por isso subi os degraus desta tribuna para traçar um apontamento breve e rectilínio sobre o tema em debate.

Sr. Presidente: O princípio informador da assistência judiciária consiste em corrigir e atenuar as desigualdades económicas das partes, nos processos que correm nos tribunais. Este objectivo é prosseguido mediante a atribuição aos mais pobres do benefício da dispensa do pagamento dos encargos judiciais e do patrocínio oficioso.

A proposta de lei em discussão destina-se, precisamente, a facilitar e simplificar a concessão do referido benefício, pelo que merece aplausos, num país em que a justiça é cara e começa a ser má.

As inovações que o Governo propõe estão resumidas nas onze alíneas constantes do relatório da proposta. Não vou repeti-las.

Salientarei, apenas, as que se referem à cumulação obrigatória da dispensa do pagamento dos encargos judiciais e do patrocínio oficioso, à apreciação da viabilidade do pedido do benefício e à posição demarcada aos advogados, na economia da proposta.

E começo por discordar do princípio estabelecido na base I.

Não compreendo qual a necessidade de tornar obrigatória a cumulação dos dois benefícios em que se desdobra a assistência judiciária.

Se o instituto não traduz um mero favor, nem uma pura dádiva (pretende respeitar na dignidade do assistido, porque razão se lhe nega o direito de escolher e optar entre a concessão dos- dois benefícios ou só de um deles?

Vozes: - Muito bem !

O Orador: - Neste capítulo, o sistema vigente, que emana do § 2.º. do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 33 548, parece preferível, pois, não impedindo a atribuição das duas regalias, também não corta, aos interessados, a liberdade de escolherem, apenas, uma delas.

Vozes: -Muito bem!

O Orador: - O direito de obrigar, quando não comporta vantagens evidentes e não abrange aspectos essenciais, deve ser desanimado, ou utilizado com a maior prudência.

No caso em apreço, não é necessário, nem útil, eliminar uma faculdade para impor uma obrigação, isto é, para criar um benefício à força.

Já no problema erguido à volta da viabilidade do pedido da concessão da assistência, a solução governamental, contraposta à da Câmara Corporativa, afigura-se melhor e mais consentânea com os fins do próprio instituto.

O Sr. Correia das Neves: -Muito bem !

O Orador: - É certo que sempre se poderá argumentar que reduzir a apreciação da viabilidade do pedido ao simples exame do articulado é uma forma de animar a tendência para a lide temerária, de feição especulativa, isto é, de fomentar uma espécie de indústria judicial.

Mas o perigo é mais aparente do que real.

Com efeito, a prática tem demonstrado que a exigência do pressuposto da viabilidade do pedido não tem servido de travão a pleitos aventurosos.

Por falta desse requisito, poucos pedidos têm sido indeferidos.

Acresce que a apreciação, através do exame do articulado, não deixa o julgador desarmado quando a inviabilidade for manifesta, pois sempre poderá lançar mão dos poderes consignados no Código de Processo Civil para a generalidade dos pleitos.

Além disso, a solução governativa é o corolário lógico de se ter atribuído ao juiz da causa a competência para decidir também o pedido da assistência judiciária.

Aceite esta reforma, a tese da Câmara C orporativa passaria a ser bastante perigosa, por levar o julgador a formular um juízo prévio sobre o pedido da causa principal, com a possibilidade e o risco de inquinar e distorcer uma visão límpida e descomprometida das provas a produzir posteriormente.

Para além das dificuldades normais, haveria sempre que vencer ainda uma impressão, tantas vezes sem alicerces sólidos.

Depois, se o propósito da assistência é, no fundo, estabelecer, o mais possível, a igualdade de todos perante a lei, a exigência da viabilidade da pretensão acabaria por significar uma desigualdade, na medida em que ao litigante abastado não é imposta a prova de tal requisito.

Finalmente, algumas notas sobre a posição da advocacia em face da proposta de lei.