do poder político no Presidente da República. Mas isto, apenas em teoria, porque tudo se passou durante o longo consulado de Salazar e este nunca quis deixar de ser, simplesmente, Presidente do Conselho de Ministros.

A pouco e pouco, mas conscientemente, esta Assembleia permitiu que as suas atribuições de órgão legislativo fossem perdendo conteúdo e sentido para se satisfazer com uma vaga atribuição de órgão fiscalizador dos actos do Governo.

A Assembleia Nacional perdeu, de facto, com os poderes inicialmente atribuídos, importância e projecção políticas. Funcionando apenas durante um curto período em cada ano, a sua actividade pode ser facilmente orientada e consumida no tratamento de assuntos de escasso significado para a vida política do País.

Mas é em 1959 que a Constituição sofre, com o assentimento resignado desta Câmara, o maior atentado que se lhe poderia fazer: o Chefe do Estado, autoridade suprema da Nação, passa a ser escolhido por um colégio eleitoral, cuja representatividade e independência deixam muito a desejar.

Todos nós sabemos por que surgiu esta ideia peregrina do colégio eleitoral; todos nós sabemos por que se aborrecem os pedidos eleitorais. Mas que o Governo assim pense, ainda se pode aceitar; impõe-no, quando muito, a continuidade do Regime. O que se me afigura inadmissível é que esse mesmo sentimento possa ser manifestado pelos legítimos representantes do povo que nós somos, do povo que constitui a Nação e do qual emana toda a soberania, do povo que, a pouco e pouco, se viu divorciado do Poder.

O Sr. Agostinho Cardoso: - V. Ex.ª dá-me licença?

O Orador: - Faça favor.

O Sr. Agostinho Cardoso: - V. Ex.ª acaba de dizer que acha inadmissível que alguns de nós pensem haver vantagem em manter o actual sufrágio, corrigido e aumentado.

Vou-lhe dizer por que acho admissível pensar assim e por que acho estranho o uso da palavra «inadmissível».

O Orador: - É a palavra que entendi dever usar.

O Sr. Agostinho Cardoso: - Não quero neste momento estabelecer uma controvérsia sobre a superioridade do sufrágio directo ou do sufrágio dualista, como agora se usa para eleição do Presidente da República, porque isso é muito complexo.

O que lhe quero dizer é que o sufrágio directo foi aperfeiçoado ao longo do tempo que vai de 1933 para cá: votam mais mulheres, votam mais analfabetos, vota muito mais gente...

O Sr. Pinto Machado: - Os analfabetos parece-me que não.

O Orador: - Parece-me que há certos analfabetos que podem votar, gente que paga além de uma certa importância na contribuição predial, etc.

O Sr. Casal-Ribeiro: - Os analfabetos crónicos...

O Sr. Sá Carneiro: - Os analfabetos políticos...

O Sr. Agostinho Cardoso: - Eu admito que este sufrágio dualista, não exclusivamente orgânico, possa ser aperfeiçoado. O colégio eleitoral é constituído em grande parte pelos Deputados que foram eleitos com a capacidade de rever a Constituição, que todos nós estamos a discutir, da qual revisão vai depender o processo de sufrágio para eleição do Presidente da República - a esses Deputados, dizia, foi conferido um poder maior do que o de eleger o Presidente da República: o de reverem a Constituição.

Esses Deputados foram eleitos directamente pelos cidadãos, já com este condicionamento de os representarem nesta eleição.

O Sr. Pinto Machado: - Esse raciocínio está algo obscuro... ou eu é que estarei algo obtuso?

O Sr. Agostinho Cardoso: - Sr. Deputado: Eu estou a improvisar.

Portanto, se tiver qualquer dúvida, poderei depois esclarecê-lo.

Este sufrágio dualista pode ser aperfeiçoado, dizia, pois reconheço que tenha algumas deficiências, como seja, sobretudo, conter pessoas que são da nomeação do Governo.

É possível, portanto, aperfeiçoar aquilo que em 1959 foi feito com certos defeitos.

Mas não há, parece-me, motivos para se julgar inadmissível que aqui na Assembleia haja quem pense de maneira oposta a V. Ex.ª, e tenha razões para isso. Pode V. Ex.ª achar vantagens no sufrágio directo; eu acho-lhe inconvenientes graves.

O Orador: - Eu agradeço muito a exposição que V. Ex.ª acaba de fazer e que é fruto de uma longa vida parlamentar.

Aquilo a que eu chamo inadmissível é a atitude da Assembleia em 1959. - É um bocadinho diferente...

O Sr. Agostinho Cardoso: - Eu pensava que se referia às pessoas que discordam do sufrágio directo.

O Orador: - Eu aceito perfeitamente o lapso, porque ontem ou anteontem também troquei o sentido de uma palavra e intervi sem razão.

Portanto, o que se me afigura inadmissível é que esse mesmo sentimento possa ser manifestado pelos legítimos representantes do povo - nós que somos eleitos por sufrágio directo.

O Sr. Agostinho Cardoso: - Portanto, é inadmissível, diz V. Ex.ª, que nós, que fomos eleitos por sufrágio directo, pensemos assim. Afinal eu tinha razão nos comentários que fiz.

O Orador: - No dia em que o povo português for totalmente impedido de se manifestar, no pleno uso dos direitos que a Constituição lhe confere, na escolha dos seus representantes e dirigentes e na definição do regime que o deve governar, então, meus senhores, teremos voltado à ditadura e renegado os mais elementares princípios da democracia e da liberdade do homem.

As últimas eleições para Deputados constituíram uma prova insofismável de que o povo não trai, de que o povo reconhece os méritos de quem o serve, de que o povo, ainda que mal informado, corresponde da melhor forma às provas de confiança que lhe dão. Marcelo Caetano pôde receber, assim, nessas eleições, um dos testemunhos mais vibrantes de apoio jamais outorgado neste País a um Chefe do Governo.