Em primeiro lugar, atrevo-me a pensar que este princípio estaria até igualmente no espírito do Governo ao apresentar a proposta, pois esta conclusão pode tirar-se perfeitamente do discurso proferido, nesta Câmara, pelo Sr. Presidente do Conselho. Com efeito, diz o Sr. Presidente do Conselho:

Essa política [referia-se à política em relação ao ultramar], porém, mesmo nos planos da cultura, deve respeitar as diferenciações regionais, como sucede dentro da própria metrópole. Em cada província ultramarina há populações, com os seus usos, costumes, religiões e práticas que, em tudo quanto não ofenda os princípios morais da civilização, respeitamos e procuramos conservar, fazendo, quanto muito, evoluir colectivamente os agregados sociais.

Por outro lado, quando o Conselho Ultramarino se debruçou, ainda há poucos anos, sobre a extensão do Código Civil ao ultramar, escreveu palavras que creio que merecem reproduzir-se, porque são de entidades jurídicas bem mais idóneas do que eu. Dizia-se, ao comentar o projecto do novo Código Civil:

Os autores do projecto do Código Civil - tal como se deu com o legislador de 1869 -, expressão da cultura de uma comunidade, alhearam-se das realidades ultramarinas, atitude, aliás, compreensível, pois que, embora em quase um século muita coisa tenha mudado e evoluído, mantém-se, todavia, a diversidade de relações sociais a regular, a multiplicidade de padrões culturais, a peculiaridade de objectivos a atingir. No tocante ao regime dos direitos sobre a terra, os fins políticos são ainda os mesmos de há cem anos, os mesmos de sempre: aproveitamento económico, fixação das populações, acautelamento da soberania, defesa dos direitos das populações autóctones, combate ao absentismo, à especulação, à má utilização dos terrenos e a todos os males derivados do liberalismo e individualismo agrícolas.

Daí que, imperturbavelmente, a legislação ultramarina nunca tenha perdido, através dos tempos, do feudalismo à idade contemporânea, a sua feição socializante e intervencionista, a o lado da qual empalidece o dirigismo de que se diz imbuído o citado projecto.

E, ao falar dos direitos de família, diz também o mesmo parecer:

A composição heterogénea do povo português, a sua estrutura tradicional e comunitária e patriarcal e o ideal cristão de fraternidade, que sempre esteve na base da obra da expansão, cedo definiram a nossa acção perante outras sociedades e culturas, e impregnaram-na desde logo do acentuado respeito pelos usos e costumes das populações que se nos depararam, de forma que a exigência da nossa actual Constituição, no que toca à contemporização com os usos e costumes locais, é regra que sempre se incluiu nos alvarás e disposições régias.

Assim, a consideração do homem de cada homem, como fenómeno único, levou a admitir um conjunto de direitos públicos, em harmonia com o direito privado, que se reconhecia e protegia, devendo-se a este, inquebrantável linha de conduta, que seja antes de mais uma contribuição portuguesa à concepção dos direitos do homem como poderes efectivos, e não como simples faculdades abstractas.

Deve-se-lhe, realmente, a formulação do único humanismo que até hoje se mostrou capaz de implantar a democracia humana no mundo para onde expandiu o Ocidente.

E conclui esse parecer:

Foi exactamente da sábia e oportuna conjugação desses dois factores, respeito pelos usos e costumes locais e vincado propósito de assimilação, que resultou a harmoniosa sociedade multirracial que se contém nos limites do território português e que, mau grado as fáceis e interessadas críticas dos nossos detractores de hoje, constitui um dos maiores serviços jamais prestados à dignificação do homem.

Eu creio que estes argumentos, aos quais poderia acrescentar a formulação feita em encíclicas recentes, justificam perfeitamente que esta ideia não tem nada de retrógrada.

Aliás, quando tive ocasião, nesta Assembleia, de defender a proposta na generalidade, eu disse que não se trata de condescender paternalmente, trata-se, antes, de uma posição diversa, que é a de respeitar os diferentes estilos de vida e as diferentes escalas de valores humanos, com os seus diferentes modos de usar as coisas, de trabalhar e de se exprimir, de formar costumes e de criar as suas instituições peculiares, de praticar a religião e de à sua maneira cultivar as artes e criar beleza. Este, pois, o sentido das palavras empregadas nesta fórmula, nas quais para produzir uma mais alta consideração se preferiu usar a palavra «respeito» à palavra «contemporização», e também o sentido da palavra «cultura».

Tenho dito.

O Sr. Delfino Ribeiro: - Sr. Presidente: Com autorização do Sr. Deputado Themudo Barata, faço minhas as suas oportunas, brilhantes e convincentes palavras.

A proposta de aditamento à alínea i) do artigo agora em discussão espelha a política nacional que vem sendo tradicionalmente seguida, com visão ecuménica, costumes e valores culturais das populações que habitam o nosso ultramar.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - O acrescentamento sugerido nada inova, limita-se tão-sòmente a realçar, conferindo-lhe dignidade constitucional, uma das inconfundíveis facetas da maneira de ser lusa:, face a multirracialidade das gentes que constituem a grande família portuguesa e das que se acolhem à sombra da nossa bandeira.

Tenho dito.

Vozes: - Muito bem!

O Sr. Júlio Evangelista: - Sr. Presidente: Só mais um esclarecimento para informar a Câmara de que não estão em causa as altas intenções que os Srs. Deputados Themudo Barata e Delfino Ribeiro acabam de expor e com as quais estou inteiramente de acordo. Eu só discordo do aditamento, não quanto ao seu significado ou ao seu fundo, mas por motivos, como acrescentei, de técnica jurídica.

O que é que aconteceu? No texto da Constituição actualemente em vigor insere-se no título VII, capítulo 2.º, o artigo 138.º, que prescreve o seguinte:

Haverá nos territórios ultramarinos, quando necessário e atendendo ao estado de evolução das po-