E eis-me, Sr. Presidente, chegado ao fim destas breves considerações. Tentei pô-las, talvez, com crueza, é certo, mas com objectividade. Espero que ao Governo, e às entidades responsáveis, elas possam merecer a atenção que é devida a uma população para quem a resolução desses problemas é um verdadeiro acto de justiça e que nada mais pretende do que, à sombra de um trabalho honesto e digno, olhar o futuro com mais confiança e optimismo.

Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O orador foi cumprimentado.

O Sr. Presidente: - Vamos passar à

Continuação da discussão na generalidade da proposta de lei sobre a liberdade religiosa.

A Sr.ª D. Custódia Lopes: - Sr. Presidente: Ao observarmos a história da humanidade, vemos que a intolerância religiosa foi durante largo tempo, e é, ainda hoje, infelizmente, em algumas regiões do mundo, motivo de lutas, ódios e perseguições que têm levado à morte os indivíduos e feito mesmo perigar a unidade das nações.

O facto de se estar neste momento a discutir na Assembleia Nacional uma proposta de lei sobre a liberdade religiosa não significa que esta situação não existisse de há muito no nosso país, quer na lei fundamental, quer na vida comum.

Foi com o advento do liberalismo que se começou a admitir em Portugal a tolerância de outras confissões religiosas, para além da religião do Estado.

A Constituição de 1822 permitiu que os estrangeiros praticassem, doméstica ou particularmente, cultos diferentes da religião católica, e, na Carta Constitucional se dizia que ninguém podia ser perseguido por motivo de religião, uma vez que respeitasse a do Estado e não ofendesse a moral pública.

Era já um passo no sentido da liberdade religiosa que haveria de ser definitivamente introduzida em Portugal em 1911 pela lei da separação da Igreja do Estado, a chamada Lei da Separação.

Porém, o carácter laicista da lei trouxe restrições à autonomia da igreja católica, as quais se fizeram sentir não só ma metrópole como no ultramar, onde os missionários durante séculos procuravam introduzir os valores morais, sociais e culturais que importam à dignidade humana e estão na base da sociedade portuguesa.

A reacção a este estado de coisas fez-se sentir fortemente, e é do conhecimento de todos as medidas legislativas que se tomaram para aplanar a tensão existente entre a Igreja e o Estado.

No ultramar tornou-se mesmo necessário suspender algumas das disposições do Decreto n.º 233, de 22 de Novembro de 1913, que estendera às províncias ultramarinas parte da Lei da Separação, encontrando-se ligados a esta firme atitude os nomes dos generais Joaquim Machado e Norton de Matos, então governadores, respectivamente, de Moçambique e de Angola.

Decretos posteriores aperfeiçoam as leis em matéria religiosa, mas é verdadeiramente a partir de 1919, com o Decreto n.º 6322, de 24 de Dezembro, do Ministro Rodrigues Gaspar, que se retoma no ultramar a tradição missionária e um novo impulso lhe é dado pelo Estatuto Orgânico das Missões, aprovado pelo Decreto n.º 12 485, de 13 de Outubro de 1926, do Ministro João Belo.

Em 1940, com o Acordo Missionário assinado juntamente com a Concordata entre Portugal e a Santa Sé, ficaram estabelecidas estreitas relações entre o Estado e a Igreja no que se refere ao ultramar português.

Um ano depois, foi publicado um extenso diploma, o chamado Estatuto Missionário, com o fim de dar execução as disposições do Acordo e actualizar o Estatuto Orgânico de 1926.

Mas, ao lado da igreja católica, existem no ultramar muitas outras religiões e cultos.

Eu própria tive ocasião de afirmar mas Nações Unidas em. 1967, durante o debate dos projectos de declaração e de convenção sobre a eliminação de todas as formas de intolerância religiosa, que mas províncias portuguesas do ultramar católicos, muçulmanos, protestantes, budistas e ainda populações de outras religiões e cultos vivem conjuntamemte sem o menor conflito. E assim é, de facto, poios que, para além da liberdade religiosa, se verifica uma perfeita harmonia entre os diversos grupos religiosos, que não só se respeitam, mas também colaboram entre si.

É de salientar a política de ecumenismo que se vem processando no ultramar e, particularmente, em Moçambique, onde o pluralismo religioso é mais acentuado.

Lê-se na obra Missão em Moçambique, de D. Eurico Dias Nogueira, bispo da Igreja em Vila Cabral, e publicada em 1970:

Na noite do passado Natal viram-se os representantes das duas maiores comunidades não católicas do Niassa assistir às cerimónias litúrgicas próprias da quadra f estiva na catedral de Vila Cabral.

Oito dias depois, todos se associaram numa mesma oração pela paz, de acordo com o apelo do Santo Padre. E as preces tiveram lugar tanto nas igrejas católicas e anglicanas como na mesquita muçulmana, a que esteve presente o bispo da diocese com uma delegação de católicos.

Ainda na capital do Niassa se assistiu a uma nova e impressionante manifestação de liberdade religiosa e de espírito ecuménico quando em 1 de Novembro, festa de Todos os Santos, se realizou uma cerimónia inédita, que foi a formação de um cortejo singular em que tomavam parte católicos, muçulmanos com os seus estandartes e dísticos do Alcorão, um grupo de protestantes e a comunidade anglicana de Mas sangere, todos entoando, alternadamente, adequados cânticos religiosos.

Este cortejo realizou-se após a inauguração de um campo de jogos, benzido pelo bispo da diocese, em que participaram com as suas preces e cânticos as diversas comunidades religiosas existentes ma região.

Estas provas de liberdade e ecumenismo religioso dão-se também em outras parcelas do ultramar português, como ma Guiné, onde existe uma larga população islamizada. Ali se poderá observar, num bairro, uma escola de instrução primária tendo anexas uma capela e uma mesquita, que o Chefe do Estado não deixou também de honrar com a sua presença na sua visita à Guiné.

Importa dizer que, excepcionalmente e em honra do Chefe do Estado, os cristãos foram autorizados a entrar calçados na mesquita, tal como, um dia antes, os muçulmanos haviam sido, pelo mesmo motivo, autorizados a entrar cobertos na catedral de Bissau.