Já vão sendo correntes as peregrinações anuais de muçulmanos portugueses a Meca, sob os auspícios do Governo.

E se me refiro a estes factos é, apenas, para testemunhar com a vivência das realidades quotidianas, como têm existido, no ultramar, não só a liberdade religiosa, mas também a harmonia e a cooperação entre as várias religiões, nos vários campos em que a sua acção ética e social se vem exercendo.

Sr. Presidente: Por tradição, por índole do povo, propenso à interpenetração e comunicabilidade com povos de outras raças, culturas e credos, e ainda pelos princípios consignados de longa data na lei fundamental, a liberdade religiosa, esse direito que a consciência individual reclama e que penetra no foro das famílias e no seio das colectividades, vem-se exercendo no nosso País apenas com as restrições constantes da Constituição.

Contudo, entendeu o Governo, pela presente proposta de lei, sistematizar as normas fundamentais que se aplicam à liberdade de crenças e cultos e que se encontram dispersas por variados diplomas, e definir mais precisamente a situação das confissões religiosas não católicas e das associações que lhes pertencem.

Procura-se, assim, condensar numa lei o conteúdo da liberdade religiosa, que se aplica igualmente a todas as confissões, dando-se, assim, execução ao preceito constitucional.

No ultramar, pela multiplicidade de situações religiosas, mais se tem feito sentir a necessidade de novas normas que assegurem o exercício da liberdade religiosa. Vários diplomas e despachos tem procurado resolver casos anómalos que têm surgido com as confissões religiosas não católicas e as associações que lhes são inerentes.

Por tudo isto, me parece oportuna a proposta de lei do Governo, que, como, aliás, se prevê, deverá ser estendida, nos termos constitucionais, ao ultramar e, pelas razões expostas, com a maior urgência.

Dou, pois, a minha aprovação na generalidade à proposta de lei do Governo sobre a liberdade religiosa.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

A oradora foi cumprimentada.

vê a mudança operada na maneira de encarar o facto religioso entre nós; passou-se de uma atitude intolerante e dogmática para uma atitude compreensiva, liberal.

Liberal quer dizer: que todas os convicções religiosas gozam dos mesmos direitos dentro do Estado, sem exclusivismos nem discriminações.

A aceitação pacífica deste facto é um progresso, mas a que é isso devido? A resposta à pergunta, embora pareça sem cabimento aqui, vai encaminhar-nos para considerações mais próximas da liberdade religiosa.

O enfraquecimento da fé é um facto bem conhecido, mas cujas causas são menos claras do que seria de esperar. Uma das razões é o carácter afectivo-emocional que investigações desta natureza determinam forçosamente. A religião, como tudo quanto toca fundamente o nosso ser, presta-se muito mal ao rigor dos métodos de pesquisa e ao estabelecimento de cadeias lógico-discursivas. Todavia, a descristianização pode reduzir-se a algumas causas fundamentais. Estando, como está, ligada à evolução das sociedades modernas, naturalmente que os povos adiantados experimentaram-na mais cedo do que aqueles que andam com vagar. Mas nem por isso deixam de se repetir entre nós os acontecimentos ou fases que estabeleceram a transição de um estado de desenvolvimento agrário para o desenvolvimento industrial. E aqui encontramos a razão primeira e principal do enfranquecimento do credo religioso. Este assentava, e ainda assenta, sobretudo em duas camadas sociais, os camponeses e a burguesia. O deslocamento da população rural para a cidade mudou os hábitos, os padrões de vida, o sistema de enquadramento sócio-psicológico, de forma que o modo tradicional de viver a fé, desaparecidos os pontos de referência, enfraqueceu e, para muitos, extinguiu-se.

As massas proletárias propendem a ver na Igreja a aliada dos grandes e afortunados do mundo, e daí deriva outra razão do esfriamento do fervor religioso. Não há dúvida que as «massas» têm objectivamente razão, pois a religião tem servido, infelizmente, de lenitivo das misérias do pobre e de justificação das desigualdades sociais.

Por outro lado, as ligações históricas que a Igreja manteve com o Estado fez crer que o poder espiritual legitimava o poder temporal.

A Igreja, sustentando o poder civil, facultava a utilização política da religião. A autoridade do Estado encontrava aí um reforço e a Igreja um auxílio contra alguns factores de descrença.

Este sistema de apoio mútuo teve o grave inconveniente de confudir o campo específico da acção da Igreja com o do Estado, de modo que aconteceu perverter-se a missão apostólica em empresas mundanais. E, inversamente, o Estado, exorbitando da sua esfera, interveio no terreno da fé.

Formou-se assim um poderosíssimo bloco histórico, composto pelos dois poderes, nem sempre coeso e harmónico, mas que constitui uma das linhas mestras da nossa história. O bloco, segundo a época e a circunstância, denominou-se a Cruz e a Espada, a Fé e o Império, o Trono e o Altar, a Igreja e o Estado.

É discutível se o Estado lucrou com a ligação, mas hoje cada vez há mais quem pense que o proveito da religião foi aparente e transitório.

Dia a dia se torna patente o carácter ambíguo das relações da Igreja com o poder temporal, aparecendo a aliança mais como um obstáculo à propagação da verdade evangélica do que como um meio favorável ao seu progresso. A inspiração evangélica requer liberdade que a influência do poder civil dificulta e a cada passo impede.

O reconhecimento destes factos tem sido lento, porque neste capítulo o peso das tradições e dos hábitos é esmagador, mas pouco a pouco os católicos e a Igreja hierár-