Até aqui, a situação que nós encontramos era, a partir de 1945, o reconhecimento expresso para a igreja católica, para a confissão católica, através das normas concordatórias que não são de simples tolerância, de simples deixar fazer, mas de atribuição de poderes juridicamente protegidos, em vista à satisfação dos respectivos fins, ou seja, de direitos.

As demais confissões, pelas razões, aliás, esquematicamente expressas no relatório da proposta, encontravam-se numa situação de simples tolerância; eram ignoradas.

A simples tolerância, em matéria religiosa, não satisfaz política e juridicamente, nem se coaduna com o direito natural da pessoa. A liberdade religiosa e os direitos em que a mesma se decompõe tem de ser tratados numa disciplina de justiça, que consiste no reconhecimento dessa liberdade e na atribuição - dos direitos correspondentes. E essa a óptica em que ela está encarada, na Declaração Universal dos Direitos do Homem, já aqui citada, e na Declaração Conciliar sobre a Liberdade Religiosa, já aqui também referida

E nessa óptica também que se orienta a base da actual proposta de lei. O princípio de que se parte não é o de mera tolerância; é o princípio do reconhecimento jurídico da liberdade religiosa para todas as confissões, com protecção jurídica das pessoas e das organizações.

Congratulo-me que assim seja e, nesse sentido, dou o meu voto à base, reconhecendo, embora, que poderiam, talvez, os termos «reconhecimento» e «protecção» ser substituídos por outros mais felizes, tais como «promoção» e «tutela».

O Sr. Roboredo e Silva: - Tutela?

O Orador: - Tutela jurídica tem sentido técnico próprio. Não é a tutela que se destina a impor uma orientação, um domínio, mas, sim, a disciplina legal através do reconhecimento e disciplina dos direitos. A liberdade consiste em depender de leis justas.

Regozijo-me que assim seja, aprovando, como disse, esta base. Mas desde já friso que o princípio fundamental de reconhecimento jurídico de liberdade das confissões e das pessoas tem de conduzir necessariamente às consequências práticas da atribuição de autênticos direitos em várias outras bases.

Não se pode mais falar, em meu entender, e sendo esta base aprovada, em mera licitude que traduz simples tolerância, mas sim em direitos, ou seja, em poderes juridicamente protegidos, com vista à realização dos respectivos fins.

Tenho dito.

O Sr. Cunha Araújo: - Peço a palavra.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Cunha Araújo, que, salvo erro, usa dela pela segunda vez nesta discussão.

O Sr. Cunha Araújo: - Não me esquecerei, Sr. Presidente.

O exercício de um direito natural, seja ou não seja direito natural das pessoas, é uma afirmação sempre de tolerância por parte do Estado que o reconhece.

Tenho dito.

O Sr. Sá Gameiro: - Peço a palavra, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sá Carneiro, que também usa da palavra pela segunda vez.

O Sr. Sá Gameiro: - É apenas para um breve esclarecimento.

Quando se diz tolerância, e eu deixei-o bem expresso, entra-se numa óptica de simples deixar fazer ou mera permissão, sem garantir juridicamente a liberdade religiosa; e a questão tem a sua importância, pois que na própria doutrina da Igreja longamente se debateu a posição a assumir perante aquela liberdade.

No próprio Concílio surgiram duas posições antagónicas.

A primeira posição defendendo como direito próprio, único, ia a dizer exclusivo, como detentora da Verdade, a liberdade religiosa para a igreja católica; de tolerância, para todas as demais confissões.

Uma segunda posição, aquela que veio a triunfar no Concílio, negava terminantemente que houvesse, quanto à liberdade religiosa, diferença entre a igreja católica e as demais confissões e que as segundas houvessem de estar submetidas a um regime de simples tolerância.

Efectivamente, neste capítulo, a tolerância é necessária, mas não suficie nte.

Como disse, aquela posição foi a que veio a vingar na Declaração Conciliar, ultrapassando-se a simples tolerância. É essa também a posição da nossa Constituição, designadamente do artigo 8.º, que garantindo a liberdade de culto a todas as confissões afasta a simples tolerância para as demais.

Tolerar é meramente consentir; depende de quem consente, e ida maneira como o permite, enquanto aquele que consente o faz quando quiser e como quiser. Isto é, em matéria religiosa como em matéria de quaisquer dos direitos fundamentais da pessoa humana, inadmissível. Inadmissível no plano teórico, inaceitável nos planos constitucional, legal e prático, visto que é essencial que se consagre a disciplina jurídica das liberdades através da atribuição dos correspondentes direitos, nas leis e nas práticas; isso não se fará se eles ficarem na dependência ou ao arbítrio ido Poder. Jamais o poder político em matéria de direitos fundamentais da pessoa se pode remeter a uma simples p osição de tolerância.

Não pode esquecer-se que o fim principal do poder político é o serviço da pessoa; e não a servirá se em qualquer momento, partindo de uma posição de tolerância dos direitos fundamentais, puder eliminá-los, coarctá-los ou suprimi-los. Por isso me parece que nesta óptica não há que falar em simples tolerância. Congratulamo-nos, eu pessoalmente congratulo-me, pelo facto de assim não ser nesta primeira base. Haverá que extrair, pois, as necessárias consequências quanto aos demais preceitos.

Tenho dito.

O Sr. Cunha Araújo: - Peço a palavra.

O Sr. Presidente: - V. Ex.ª deseja a palavra para explicações?

É que V. Ex.ª, não sendo autor do texto em discussão, não pode usar da palavra pela terceira vez.

O Sr. Cunha Araújo: - Se não puder usar dela de outra forma ...

O Sr. Presidente: - Mas é preciso que seja para explicações.