cial dos valores religiosos nem furtar-se ao auxílio e protecção que lhes deve por imperativo do bem comum. Se aconfessionalidade não significa de modo nenhum neutralismo, também separação e colaboração se devem ter como realidades complementares».

Felizmente, não há entre nós numa questão religiosa, pelo que também os bispos portugueses fizeram bem em advertir que seria pernicioso para o País se criasse na opinião pública a ideia falsa de que ela existe. Ora, seria também menos desejável que um documento como aquele que vai ser votado pela Assembleia pudesse, de qualquer modo, mesmo no aspecto formal, ser diminuído na autenticidade das suas altas intenções e na coerência das suas proposições fundamentais.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: -Ainda sobre a mesma base, permito-me recordar o que aqui disse, há dias, aquando da apreciação do artigo 46.º da proposta de lei relativa à revisão constitucional.

Na verdade, e sobre o regime da separação, pronunciei-me favoravelmente quanto à sua manutenção, mas considerei o termo que o individualiza menos próprio, «até pelo que recorda de uma política do passado toda centrada, em nome da separação contra a ideia de Deus e contra a verdadeira e efectiva liberdade religiosa».

Pena é que se não tenha adoptado entre nós uma solução semelhante à da Constituição italiana, que se exprime em termos mais realistas e aceitáveis e que, sem ferir qualquer confissão religiosa, logra estabelecer a posição da Igreja Católica de acordo com os factos e com os interesses gerais.

Neste pendor de ideias, não poderia também deixar de levantar reservas ao que se dispõe no n.º 2 da base II. Afiguram-se-me, com efeito, bem fundamentadas as dúvidas que sobre a mesma matéria são apontadas pela Câmara Corporativa.

Recordo as considerações que sobre a posição especial da religião católica no nosso país aqui produzi há dias, aquando da apreciação da proposta da revisão constitucional, pois quero confirmá-las inteiramente, apoiando-me, uma vez mais, na declaração do Episcopado, e sem quebra do princípio da liberdade religiosa que defendo na linha de um fundo pensamento renovado pelo Concílio. Os historiadores mais insuspeitos reconhecem que «há, desde o início da nacionalidade, tanto no pequeno território europeu como nos vastos territórios do ultramar, a presença contínua da Igreja, como educadora dos nossos sentimentos, daquilo que há de mais profundo na nossa maneira de ser ou de estar no mundo ...

E esta presença não se deve medir em termos puramente estatísticos ou de simples representatividade numérica, isto é, só porque são maioria os católicos entre nós. Há-de medir-se em termos de civilização e de história, prolongada por mais de oito séculos de vida nacional».

Mas pretender-se-á, acaso, que o n.º 2 da base II dê guarida a esta verdade ou a este princípio? Se assim é, lograr-se-á atingir tão alto objectivo? Bem quisera responder afirmativamente, mas não posso esquecer a votação de há dias desta Assembleia sobre o artigo 46.º da Constituição, a que não pude aderir, porque também entendo que «a Nação é muito menos o somatório dos cidadãos habitantes de certo território do que uma forma de cultura, uma alma, um património de ideias vividas em comum», às quais - a essa forma de cultura e a essas ideias - deveria continuar subordinado constitucionalmente, de modo inequívoco, o Estado ...

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Estas considerações levam-me a concordar com a proposta de alteração do Deputado Cunha Araújo, embora me parecesse preferível a redacção da Câmara Corporativa, e a discordar do n.º 2 da proposta de lei e, pela mesma razão, ou, melhor, por maioria de razão, da alteração preconizada pelos Deputados Sá Carneiro, Correia da Silva e Pinto Balsemão. A ter de optar por uma ou por outra destas últimas, preferiria a do Governo, por me parecer mais sóbria, mais dará e mais apropriada à disciplina da matéria que abrange.

O parecer da Câmara Corporativa elimina as importantes questões que, neste plano delicado da Fé, tocam profundos sentimentos dos homens e sobre as quais muitos se deixaram possuir de ideias unilaterais e sectárias de seautido positivo ou negativo.

Valerá a pena falar da Lei da Separação de 1911 e do que ela representou para o País em aspectos de maior gravidade, a ponto de, no preâmbulo do Decreto n.º 3856, de 22 de Fevereiro de 1918, o Ministro da Justiça Moura Pinto ter escrito estas palavras incisivas?

Mas, se é certo que as leis de ordem geral devem reflectir, na mais larga medida, as aspirações do País a que se destinam, nem sempre os legisladores conseguem furtar-se ao império dos seus sentimentos e das soías paixões, de modo a manterem-se serenos e lúcidos intérpretes da vontade da Nação. Assim aconteceu com a Lei da Separação. Contendo princípios universalmente aceites, como garantia do pensamento e da consciência, medidas indispensáveis à segurança da ordem e dos interesses do Estado, ela viu em demasia o Estado em função de ordem e de interesses e, impropriamente, misturou o Regime em contendas de crenças, como se a República em 5 de Outubro fundasse uma religião que tivesse um credo hostil a qualquer outra já existente.

E se a intolerância política ou religiosa por parte dos cidadãos constitui o mais deplorável espectáculo que pode oferecer um país livre e moderno, a intolerância do Estado nem sequer se compreende, degradando a sua alta missão de equilíbrio e imparcialidade.

Os tempos mudaram e, ao menos neste domínio, creio que estes problemas tão melindrosos estão a ser encarados com maior abertura de espírito e com mais objectividade. Mesmo assim ficaram no ar e nas mentalidades muitos preconceitos e deformações que é mister superar. Por outro lado, não são raras as confusões em volta da matéria. Algumas dessas confusões estão bem denunciadas no parecer da Câmara Corporativa e não será de todo inútil chamar, por exemplo, a atenção para o que nesse documento se escreve no seu n.º 26 sobre «a liberdade religiosa e a igualdade de regime jurídico aplicável as diferentes confissões».

A Assembleia Nacional poderá não concordar com tal ponto de vista, mas não deverá votar qualquer norma em sentido contrário, sem o rebater e sem demonstrar que há outro mais procedente. Quem diz Assembleia Nacional, diz Governo, claro está.

Vozes: - Muito bem!