Vinte minutos, pouco mais, seria o tempo desse voo de termo de missão, que em consciência todos a tínhamos por plenamente cumprida.

Mas eis que de súbito, sobre o rio tormentoso, uma dezena de minutos passada, fomos envolvidos por nuvens densamente enegrecidas, que nos travaram a marcha, e arrebatados por vento ciclónico, obrigando os helicópteros a cabriolas estonteantes. Umas clareiras abertas nos palmares do ilhéu de Jete recolheram dois dos aparelhos para lá arremessados em emergência providencial.

Lembramos todo este passo da tragédia tão-somente por ainda haver quem descreia da verdade do tornado maldito.

Os elementos revoltos vindos da banda das Dórcadas, ilhas citadas pelo Poeta na embocadura dos rios da Guiné, até parece que mais uma vez carrearam, espalhando a morte, a maldade viperina das Górgonas que as habitaram, e nesse dia infausto voltaram a ter lá assento!

Sr. Presidente e Srs. Deputados: Infelizes companheiros aqueles que não tiveram por si a Providência que a nós nos amparou!

Mas não os choremos; honremo-los antes com as veras maiores do nosso sentir!

Morrendo pela Pátria -Pinto Buli, Leonardo Coimbra, Vicente de Abreu e Pinto Leite -, libertaram-se da lei da morte, e aqui, nesta Casa, continuam espiritualmente a viver connosco lado a lado, alentando-nos para as tarefas ingentes que temos a desempenhar, para um amanhã sumamente avigorado, que encha de orgulho o sentimento arriagadamente português dos seus desditosos filhos e lhes dê a justa compensação da sua desventura.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - "A terra da Guiné - disse-o ainda não há muito tempo o Sr. Presidente do Conselho -, adubada pelo sangue dos soldados portugueses há-de florescer", e agora, com mais este sangue derramado, por homens desta têmpera e valimento, afirmamo-lo nós, em plena consciência de certeza, que há-de mesmo dar flores bem férteis, que hão-de frutificar, e tanto, que a havemos de ter, por muitos longos tempos, inteira e grande, como se quer!

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Sr. Almeida Garrett: - Sr. Presidente e Srs. Deputados: Voltamos a reunirmos para o começo de mais uma sessão legislativa. Voltamos a esta Casa com os anseias, as esperanças, os entusiasmos e a determinação persistente que reflectem, em nossas consciências, as responsabilidades irrecusáveis do mandato que a Nação nos conferiu.

Mas, porque somos homens, alo reentrar no hemiciclo desta Sala, sentimo-nos ensombrados pela tristeza e tentados pelo lamento de nos considerarmos mais pobres.

Olhamos à nossa volta: Pinto Buli, Vicente da Abreu, Pinto Leite e Leonardo Coimbra - ontem, aqui, no convívio fraterno de homens que, por o serem, se respeitam e estimam na eventual diversidade dos formas de pensar e de agir!

Pinto Buli, no entusiasmo da sua permanente defesa dos mais profundos valores e interesses da sua tão querida Guiné, berço amorável e túmulo cioso do seu ilustre filho. Vicente de Abreu, na delicada discrição de um trato exemplar, voltado dedicada e apaixonadamente para os problemas da tenra, batendo-se por ela sem descanso, desinteressadamente e com todos as suas forcas. Pinto Leite, prodígio de energia e entusiasmo, servido por uma inteligência desempoeirada, um coração de ouro e afecta consciência, que sustentavam uma forte personalidade, inteiramente devotada aos ideais superiores de uma sociedade portuguesa cada vez mais justa e progressiva.

E Leonardo Coimbra, o S. Leonardo do nosso circulo do Porto, tão firme nas suas convicções como tolerante com as dos outros, retrato em corpo inteiro de um verdadeiro homem, no que a palavra tem de mais elevado e mais digno! Leonardo Coimbra, o conscientemente esquecido de si próprio para se entregar, por todos as formas, à defeso e promoção de uma sociedade mais justa, por mais autenticamente humana.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: A sua notabilíssima obra de protecção à criança socialmente em dificuldades, de promoção da sua defesa contra a crueldade e o abandono, e da sua readaptação quando "interiormente empobrecida" e incapaz, por isso, de se adaptar por si própria os duros exigências" da vida - essa notabilíssima obra já constitui hoje um marco inapagável da passagem pela berra, nortenha da personalidade verdadeiramente apostólica de Leonardo Coimbra, filho.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Leonardo Coimbra, o inquieto pensador dos problemas da juventude, o interessado estudioso e impulsionador do generalização de uma preventiva medicina do trabalho, o dedicado paladino da consideração urgente e sistemática dos problemas da velhice em todas as suas implicações humanas - Leonardo Coimbra tinha um passado parlamentar e projectos objectivos de futuro. Um e ou feros inseriam-se numa coerente unha de pensamento, em que o respeito pelo seu semelhante, como respeito integral que era, se animava ao calor de uma presença constante, origem, fim e medida de todos os seus actos; pois com Cristo, em Cristo e por Cristo vivia e trabalhava, confundindo com o seu destino, em fraterna humanidade integral e indestrutível, "os destinos mutilados e infelizes" que tonto ajudou a reconstruir e a salvar!

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - "Ajudar o homem a possuir-se a si mesmo e a crescer em dignidade humana é a mais alta missão a que nos podemos entregar" - são palavras de Leonardo Coimbra.

Reconhecendo que a sua entrega foi total e que Deus, ao aceitá-la, lhe concedeu a suprema graça de encontrar, na hora própria, o caminho verdadeiro para a afirmação de uma vida valido e autêntico, compreendemos a razão profunda por que, com humildade, mas com avaliação consciente do seu significado, Leonardo Coimbra pode dizer: "Assim, hoje não me encontro solitário na existência!"

E, compreendendo-o, compreendemos também ser essa uma situação que transcende o próprio Leonardo Coimbra, na vida e na morte: comungamos dela, através da nossa participação nos seus anseios, nas suas preocupações e nos seus projectos. É o modo como os vivos podem participar na glória que a paz, de Deus concede aos seus eleitos chamados deste mundo.

Pinto Buli, Vicente de Abreu, Pinto Leite, Leonardo Coimbra!