No nosso caso, o acordo estabelecido em 1940 visou regulamentação geral dos relações entre a Igreja e o Estado se o saneamento de uma série de pendências anteriores, cuja solução havia sido antes tentada sem resultado; mas teve também como fim colocar a Igreja em posição excepcional pelo que se refere ao exercício de algumas liberdades.

Como se sabe, no mesmo dia em quê a Constituição de 1933 iniciou a sua vigência, surgem os decretos do Governo, ainda hoje em vigor, relativos à supressão de liberdade de expressão de pensamento pela imprensa e ao condicionamento estrito do direito de reunião, completados depois por toda uma legislação fortemente restritiva, e frequentemente impeditiva, do exercício das liberdades enunciadas no artigo 8.º, § 2º, da mesma Constituição.

Se toda esta legislação referente aos direitos de expressão de pensamento, de ensino, de reunião e de associação fosse estritamente aplicada à Igreja e ao culto católico, desapareceria para os católicos a liberdade religiosa, que não tem existido para os fiéis de outras confissões, pois esta liberdade implica a garantia de efectivo exercício daqueles direitos, como se assinala no preâmbulo do projecto de proposta recentemente apresentado pelo Governo.

Dentro de certos limites embora, mediante as disposições da Concordata, a igreja católica assegurou-se do exercício dos direitos de expressão, de ensino, de reunião e de associação, em termos que não eram, como ainda não são, facultados à generalidade dos cidadãos nem às demais confissões, relativamente aos quais ela se encontra, portanto, numa situação privilegiada.

Se o exercício desses direitos era, e é, indispensável para uma eficaz liberdade religiosa, há outros privilégios que a Concordata consagra que eram, e são, desnecessários e até prejudiciais, e que atestam uma certa oficialização contrária ao princípio da separação que a Constituição consagra.

Assim, os eclesiásticos no exercício do se u ministério são equiparados às autoridades públicas quanto à protecção dispensada pelo Estado, e encontram-se isentos de serviço militar activo, visto que o prestam sob a forma de assistência religiosa às forças armadas.

O uso abusivo do hábito religioso ou eclesiástico é punível como se o fosse de uniforme próprio de emprego público.

Os capelães- militares, que têm jurisdição paroquial sobre as suas tropas, são considerados oficiais graduados.

O ensino da religião e moral católicas é obrigatório nus escolas oficiais. Estas algumas das regalias concordatárias.

Em contrapartida a Santa Sé, antes de nomear um bispo residencial ou coadjutor com direito de sucessão, tem de ouvir o Governo a fim de saber se ele tem objecções de carácter político geral quanto à pessoa indicada.

Os privilégios entrelaçam-se, pois, como é habitual, com subordinações; e aparecem também como contrapartida de concessões.

A Igreja abdicou das suas reivindicações quanto aos bens de que havia sido privada que estivessem aplicados a serviços públicos ou classificados como monumentos nacionais ou como imóveis de interesse público.

Mas foram-lhe atribuídas umas certas isenções fiscais.

Referiu o Doutor Marcello Caetano, em 27 de Julho do ano passado, que «Salazar deu à Igreja em Portugal possibilidades perspectivas que a Concordata com a Santa Sé veio consolidar segundo ás concepções dessa época».

Creio bem que essas não são as concepções de hoje: nem para a Igreja, nem para o Estado.

Passaram-se mais de trinta anos, durante os quais teve lugar o Concílio. A doutrina que explicitou não é nova na sua substância: não podia sê-lo, porque a revelação encerrou-se com a morte do último dos apóstolos.

Ê-o, sim, na sua formulação, na actualidade da aplicação das verdades da fé às realidades do mundo de hoje. É-o ainda na vivacidade e na actualidade do tom adoptado, na amplidão das perspectivas que abriu.

A Igreja procurou re novar-se e purificar-se: libertar-se da carapaça do juridismo, abandonar privilégios temporais, recusar servir-se dos meios próprios do poder civil para utilizar os meios e os caminhos próprios do Evangelho.

Reivindica, sim, a sua liberdade «como principio fundamental das suas relações com os poderes públicos e toda a ordem civil», como sociedade que é formada por homens que têm o direito de viver na sociedade civil segundo os princípios da fé cristã.

Ainda de acordo com um dos documentos conciliares, «ela não coloca a sua esperança nos privilégios que lhe oferece a autoridade civil; mais ainda, ela renunciará ao exercício de alguns direitos legitimamente adquiridos quando verifique que o seu uso põe em causa já sinceridade do seu testemunho ou que novas condições de vida exigem outras disposições».

A esta luz não podem deixar de considerar-se obsoletas muitas das disposições concordatárias.

E assim o parece também entender o Governo, especialmente ante as propostas de lei de revisão da Constituição e da referente à liberdade religiosa, esta ainda em projecto.

O Sr. Ganha Araújo: - V. Ex.ª dá-me licença, só para fazer uma pergunta?

O Orador: - Com certeza.

O Sr. Cunha Araújo: - V. Ex.ª está a proceder à justificação da apresentação de algum projecto-lei?

O Orador: - Não.

O Sr. Cunha Araújo: - Era só isso.

O Orador: - Creio que não há dúvida ...

O Sr. Cunha Araújo: - Não. Tenho estado a seguir as considerações que V. Ex.ª vem produzindo e tem-me parecido que está a trazer para aqui toda a matéria das relações de convívio entre a Igreja e o Estado; não é?

O Orador: - Bom, se isso representa o elogio do que estou a ler, agradeço muito a V. Ex.ª

O Sr. Cunha Araújo: - V. Ex.ª é um estudioso do Direito, é um advogado, e a mim não me surpreende nada que se encontre tão bem apetrechado.

O Orador: - Muito obrigado!

Já no notável parecer da Câmara Corporativa emitido sobre a proposta de lei de revisão da Constituição de 1951 e relatado pelo Prof. Marcello Caetano se adoptava, quanto à liberdade religiosa, uma posição muito mais aberta do que aquela que veio a ser aqui perfilhada, chamando-se a atenção, infelizmente em vão, para o risco de a existência de uma religião da Nação vir a ser. a porta aberta para o regresso a uma religião oficial, com os seus inconvenientes práticos.