o envenenamento de todas as intenções e de todos os propósitos. E, poucos meses apenas antes da viagem, uma noite sangrenta cobrira a história política portuguesa das mais negras e vergonhosas trevas que jamais a obscureceram.

Foi sobre esta situação, este estado de descrença, de desalento, de incerteza sobre a permanência das capacidades que tinham tornado a raça heróica e que a tinham feito procurar os caminhos de todo o vasto Mundo, que Cabral e Coutinho planearam a sua viagem.

E é preciso rememorar esse estado a terior, é preciso ter vivido, como alguns de nós ainda vivemos, a emoção do momento, para compreender o que foi o alegre, o reconfortante choque na mentalidade nacional, criado por aquela demonstração de que o velho valor dos Portugueses e o velho heroísmo lusitano mão estavam perdidos e, dessem-lhes a oportunidade, se manifestariam sempre.

Num país que estava dividido - dividido por organização, e tumultuáriamente dividido - fez-se uma unidade dos espíritos, fez-se um entendimento geral, para comungar da alegria do sucesso, como talvez nunca mais tivesse voltado a verificar-se; ou porventura nunca mais foi tão grande o contraste entre a luz clara de um acto de heroísmo e de inteligência e a morneza triste dos dias que se viviam.

O contraste, graças a Deus, diminuiu-se porque o pólo inferior pôde subir. Mas é bom recordarmos que então como hoje, como sempre, haverá portugueses capazes de arrebatarem os seus concidadãos nos calores do entusiasmo, nos aplausos do apreço, na admiração da estima compreensiva e do sentimento da grandeza, do mérito e do esforço.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados: Alonguei-me mais do que devia, mas não queria faltar com uma palavra de adesão ao acto a que a Assembleia boje quis dedicar-se.

Vamos ouvir alguns de VV. Ex.ªs: uns que, como eu, viveram os entusiasmos dessa época, jovens ainda, mas na fase da vida em que justamente esses, sentimentos mais fundamente se gravam, mais vivamente se conservam na alma; outros que avaliam os merecimentos da viagem e dos viajantes pela análise a distância, pela comparação de todos os factores que nela intervieram. Não sei se diga quais serão, para VV. Ex.ªs e para o País, os melhores e mais válidos juízos, mas todos irão concorrer para reavivar e reafirmar o quadro que ficou inscrito definitivamente nas páginas da nossa história e que nunca será de mais recordar e enaltecer para exemplo dos vindouros.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Roboredo e Silva, a quem peço que suba a tribuna, dada a dignidade da matéria de que vamos ocupar-nos.

O Sr. Roboredo e Silva: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: A efeméride que solenizamos é de tão transcendente importância que não seria lícito ao homem vulgar que sou pronunciar palavras que não fossem precedidas de alguma transcrição ajustada ao imortal acontecimento, de outro "morredouro evento que comemora no ano corrente o seu quarto século: refiro-me necessariamente a OB Lusíada, cuja 1.ª edição, feita pela tipografia de António Gonçalves, data de 1572.

Estrofe XXIX (Canto VI)

Viste que, com grandíssima ousadia,

Foram já cometer o Céu Supremo;

Vistas aquela insana fantasia

De tentarem o mar, com vela e remo;

Vistes e ainda vemos cada dia

Soberbas e insolências tais, que temo

Que do mar e do Céu, em poucos anos,

Venham deuses a ser, e nós humanos!

Estrofe C (Canto V)

Porque amor fraterno e puro gasto

De dar a todo o lusitano feito

Seu louvor, é somente o pressuposto

Porém não deixe enfim de ter deposto,

Ninguém a grandes obras sempre o peito

Que por esta ou por outra qualquer via

Não perderá seu preço e sua valia!

O Épico, 350 anos antes, já prenunciava que os Portugueses iriam mais além do que fora a epopeia, até há uma dúzia de anos sem igual, das navegações e descobrimentos e que valia a pena fazer todos os sacrifícios pela Pátria, pois os grandes feitos não seriam esquecidos. Simplesmente a via - poema épico ímpar - esgotara-se com Luís Vaz de Camões. Esta afirmação de até há pouco sem igual respeita desde logo à exploração espacial e designadamente as viagens à Lua.

E que, na realidade, a viagem aérea Lisboa-Rio de Janeiro, iniciada fez no dia 30 de Março passado 50 anos e que nesse dia de 18 de Abril de 1922 teve o seu momento mais alto com a amaragem do Lusitânia nos penedos de S. Pedro e S. Paulo, constituiu outro portentoso empreendimento, onde a ciência e a técnica se aliaram a ousadia e abnegação, que dentro de certos limites se pode comparar aos da época de Quinhentos.

Tal como na Escola do Infante D. Henrique, em Sagres, se transformou o complexo astrolábio, conhecido há séculos, que apenas servia porá "fixar as horas e prever o futuro, no instrumento de observação astronómica que permitiu os navegações oceânicas e ali se estudaram, além do regimento do Sol, os ventos e as correntes marítimas do Atlântico - trabalho espantoso e silencioso dos caravelistas do Infante - que permitiram os viagens à vela das naus com a maior segurança, também Gago Coutinho, sempre ou quase sempre com a colaboração de Sacadura, transformou o velho sextante usado na navegação marítima no sextante para a navegação aérea, inventou o corrector de rumos para rapidamente calcular a influência do vento sobre a aeronave (navegação estimada) e um sistema rápido de cálculo da posição geográfica pêlos astros que levava menos de um quarto do tempo necessário para a determinação da posição dos navios no mar. E isto tinha o maior significado porque, ainda que os aviões fossem lentos nessa época, a relação da velocidade média avião-navio era da ordem de 7 para 1.

Não desejaria ser muito longo nas minhas considerações, mas receio ter de o ser para situar, no seu conjunto de favoráveis implicações, tão faustoso acontecimento.