discurso de 27 de Setembro de 1968, poderia ser, quando considerada em abstracto, virtualmente ambígua. Todavia, ao longo de numerosos discursos e declarações, o Prof. Marcelo Caetano conferiu-lhe um conteúdo suficientemente claro e definido, de modo a evitar interpretações inexactas e perigosos equívocos. Foi, pois, coerentemente, sem trair promessas nem fechar caminhos que tivesse anunciado, que o Sr. Presidente do Conselho afirmou de modo categórico, nesta Assembleia, em 2 de Dezembro de 1970: «A estrutura política da Constituição de 1338 deve ser mantida.»

Os equívocos foram, porém, gerados e nutridos por uma mais ou menos, explícita desconformidade verificável entre a teoria assim enunciada pelo Sr. Presidente do Conselho desde 27 de Setembro de 1968 e a prática política, seguida nalguns sectores da governação pública, bem como pela actuação de alguns que, tendo aderido, ao menos na aparência, tais fórmulas de «renovação na continuidade» ou «evolução na continuidade», colocaram veementemente, se não em exclusivo, a tónica no primeiro elemento das citadas fórmulas, sem que, por omissão ou calculo, alguma vez hajam exposto, com clareza e rigor, o que entendiam por «evolução». Ora, segundo credo, o termo que. tanto por exigências de ordem conceitual como de prática política, necessitava de ser dilucidado era o de «evolução» (ou o seu sucedâneo, «liberalização»), e não o de «continuidade». Ser partidário de mudanças» é uma expressão que, por indeterminação significativa, funciona como uma forma vazia: o que se to rna necessário e pertinente, a fim de evitar confusões, enganos e desenganos, é estabelecer o teor das mudanças preconizadas.

Tanto quanto a contingência do conhecimento histórico nos permite avaliar, está a ocorrer no mundo ocidental, desde há cerca de três anos, uma profunda, alteração das estruturas ideológicas, políticas e sociais. Um sociólogo tão qualificado e doutrinariamente tão insuspeito como Michel Crozier, ao analisar, em obra recente, o fim do que designa como «sonho de convergência», escreve:

Quem teria podido pensa-lo sequer há somente seis ou sete anos, quando o mundo inteiro vibrava ainda nessa esperança, ao apelo dessas grandes figuras da aberta» e da liberalização, Kennedy, Khrubachev, João XXIII? [. . .] O sonho da convergência afundou-se ao mesmo tempo que um certo ideal de progresso fácil e indefinido, de confiança na razão humana. e de fé liberal - ideal de que e América do Peace Corps constitui o melhor exemplo, mas de que se poderiam reencontrar sinais na exuberância kbrubocheviana e na simplicidade do Papa João. (Cf. La Société bloquée, Paris, 1970, p. 184.)

Nesta viragem da história europeia e com a peculiar configuração ida nossa problemática nacional, seria viável entre nós uma alternativa política de teor demo-liberal? Convictamente respondo que não. Um conhecimento, ainda que parcelar, das forças político-ideológicas em presença, da sua dinâmica, das suas influências e dos seus apoios internos e externos, mão pode conduzir a outra conclusão que não seja a de reconhecer que tal alternativa viria a ser de teor socialista e marxista. Em Portugal, a democracia cristã, possível concretização dessa alternativa de teor demo-liberal, perdeu o comboio da história - e com mais de vinte anos de atraso. E, nesses vinte anos de atraso, quantos tensões e contradições se foram acumulando e potenciando, no plano da teoria e no plano acção, nos arraiais da democracia cristã europeia . . . Repito: no nosso país e neste momento tal alternativa política de teor demo-liberal abriria inevitavelmente caminho, a breve prazo, a soluções políticas inspiradas pelos princípios revolucionários marxistas. O Prof. Marcelo Caetano tem repepidamente advertido o País desta sombria possibilidade e tem formulado esta advertência, não como capcioso sofista, mas, segundo as suas próprias palavras, «na plena consciência dos seus fundamentos».

Por outro lado, a tecnocracia, fruto do iluminismo neocapitalista desejoso de absorver a positividade do marxismo, a tecnocracia, ideologia pluralista e ecléctica por essência - e por isso proclamando obsessivamente o declínio e a morte das ideologias - , é a grande vítima desta viragem histórica a que assistimos, combatida tanto pelas filosofias da contestação e pelas ideologias da «nova esquerda» como pelas doutrinas da direita e da extrema-direita, renovadas e em rápido crescimento por essa Europa além. Enredados no sonho malsão de reduzir a vida pública a técnicas de gestão e administração eficaz, fascinados pela tentação de se transformarem na classe dirigente de uma nova ordem a instituir, os tecnocratas não compreenderam que, se o processo da racionalização confere poderes ao especialista, os próprios resultados da racionalização acabam por limitar esses poderes, pois que, a partir do momento em que a inovação pode ser codificada, reduzida a regras e a programas, o poder do especialista tende a desaparecer. «Com efeito, os especialistas não têm poder social efectivo, a não ser na linha de vanguarda do progresso, o que significa que esse poder é mutável e frágil.» Os nossos tecnocratas, enquanto tecnocratas - como, aliás, os tecnocratas europeus, em geral - , poderão fundar e animar progressivos e coloquiantes clubes e grupos de estudo, mas muito dificilmente poderão constituir uma força política relevante no plano da luta pelo poder.

Vozes: - Muito bem, muito bem!