Só nas cadeiras de Anatomia houve este ano 3500 matrículas. Se se disser que a sala de aula tem 250 lugares e que há um só professor catedrático, pode imaginar-se que condições de ensino se oferecem aos alunos do primeiro ano que, confiada e esperançadamente, entraram na Faculdade.

A cadeira de Química Fisiológica tem 1600 alunos. O professor encarregado do curso declarou há dias no colóquio do ensino médico promovido pela Associação Portuguesa da Educação Médica que as possibilidades de ensino são limitadíssimas, porquanto as aulas, dois dias depois de abrirem, terão de fechar, porque ao terceiro dia o material didáctico, as instalações, a capacidade do exíguo corpo docente da cadeira estão esgotados.

Nas cadeiras clínicas há 1500 inscrições, o que significa que não sómente a distribuição dos alunos por turmas é impossível por falta de assistentes, mas razão importante que pouca gente considera - os doentes utilizados para as demonstrações clínicas serão expo stos todas as manhãs a incómodos desnecessários e abusivos, que ofendem o seu direito ao repouso e ao bem-estar.

Eis o sudário do ensino da Faculdade de Medicina do País mais procurada pelos estudantes e a situação do Hospital de Santa Maria, o hospital preferido pelos doentes, segundo se houve dizer.

A outra face da questão é de ordem qualitativa ou, se se quiser, pedagógica. A estrutura e os métodos do ensino, a composição e distribuição das matérias, o ordenamento do currículo, o tipo de médico formado, são os mesmos há mais de sessenta anos, com poucas modificações.

Deste modo, a afluência de alunos, combinada com a desactualização dos métodos pedagógicos, levaram a Faculdade de Medicina de Lisboa à beira da catástrofe.

Perante este panorama, não chega a ser preciso invocar a insubmissão dos estudantes para explicar a crise. Bastam o desenvolvimento natural e espontâneo da população estudantil e a pedagogia obsoleta. Ora, ambos estes factos são de origem institucional.

A catástrofe que paira sobre a Faculdade de Medicina dar-se-ia fatalmente, mesmo se todos os alunos fossem ajuizados, desejosos de estudar aplicadamente e tementes da ordem estabelecida.

O Sr. Almeida Cotta: - V. Ex.ª dá-me licença?

O Orador: - Faça favor.

O Sr. Almeida Cotta: - Pareceu-me perceber que um dos graves inconvenientes que V. Ex.ª aponta e que motiva o problema universitário são as instalações e, também, o ensino, porventura deficiente.

Ora, quanto a instalações, eu pergunto a V. Ex.ª o seguinte:

Suponha que na Faculdade de Medicina se inscreviam para matrícula 10 000 alunos! Pensa V. Ex.ª que era possível arranjar instalações convenientes, num espaço de tempo relativamente curto, para suprir as deficiências das instalações disponíveis?

Pensa ainda V. Ex.ª que é possível, num curto espaço de tempo, organizar um corpo docente que seja capaz de estar a par das ciências que ensina?

O Orador: - Se V. Ex.ª me dá licença, Continuo a ler, pois suponho que a resposta vem a seguir. Se não ficar satisfeito, tenha a bondade de repetir as perguntas, a que responderei com muito gosto...

O Sr. Almeida Cotta: - Eu não poderia adivinhar que as respostas estivessem contidas no que ainda não leu.

O Orador: - Se assim fosse, haveria uma falta da minha parte!

O Sr. Almeida Cotta: - Poderia tratar-se de pôr os problemas e deixá-los sem solução.

O Orador: - Decerto, Sr. Deputado. Eu vou continuar:

Está claro que não denego a acção dos contesta-la rios, que é apontada com insistência enfadonha. Eles chamaram ruidosamente a atenção para a realidade, precipitaram os acontecimentos, fizeram deflagrar a crise, mas não a produziram e muito menos a causaram, como se diz. A crise existia potencialmente e mais ano menos ano explodia sem as convulsões da contestação.

É isto que os fanáticos da ordem e da autoridade não podem admitir, porque lhes abala a confiança na perenidade das instituições sociais. Quem havia de dizer que os estudantes contestatários, atraindo as atenções sobre si, as desviavam da verdadeira causa da crise universitária? Pois não é muito mais fácil assacar a culpa a um grupo de rebeldes do que à concepção e à organização da Universidade?

Tudo isto era previsível há mais de uma dúzia de anos, logo que o número de alunos principiou a subir, os métodos pedagógicos a manifestarem as conhecidas insuficiências e os sintomas precursores da crise a despontarem aqui e além. Mas as autoridades não se capacitaram do perigo, porque, atribuindo a agitação ao irrequietismo da mocidade se persuadiram de que o tempo, a força das instituições e alguns polícias sustinham a marcha da evolução.

A imprevidência e inércia dos últimos ministérios do Doutor Salazar traduzem no plano prático uma posição doutrinal conservadora e errada, como se está vendo.

E agora?

As novas Faculdades de Medicina anunciadas há dias pelo Ministro da Educação não têm efeito benéfico imediato. Mas se para o ano já puderem funcionar, o que parece uma ideia optimista, perdurarão as dificuldades actuais do ensino dos alunos que actualmente frequentam a Faculdade. Pode prever-se, portanto, que só à distância se farão sentir os benefícios. Se a iniciativa do Prof. Veiga Simão tivesse sido tomada há uma dúzia de anos, as coisas mudavam de figura. Assim suportamos o peso de uma herança nefasta, que , aliás, há muito quem glorifique.

O Sr. Casal-Ribeiro: - Graças a Deus!

O Orador: - A Faculdade de Medicina, como as outras, vive confinada nos seus muros, os quais, se fisicamente se modernizaram, institucionalmente permanecem tão impenetráveis como sempre o foram. Mas é preciso que essas barreiras isoladoras se abatam e o ensino se faça também noutros locais, noutra atmosfera e com novos docentes.