aspectos mais controvertidos da problemática judiciária, que é o da competência especializada dos tribunais e, por inerência, o da própria especialização dos juizes.

«A tendência moderna», escreveu-se no respectivo relatório, «mercê da multiplicidade, variedade e complexidade das questões submetidas à apreciação dos tribunais, afirmasse no sentido de uma cada vez maior especialização Esta permite ao juiz um mais perfeito conhecimento das normas aplicáveis, da doutrina e da jurisprudência, bem como o aproveitamento da sua própria vocação intelectual para um ramo do direito e disciplinas conexas »

Logo, porém, se acrescentou que uma completa especialização, além de se não mostrar, por enquanto, possível, «tão-pouco se mostraria aconselhável até determinada altura da carreira da magistratura judicial»

Ora, neste apontamento sobre a conveniência ou inconveniência da especialização está, porventura, a pedra de toque de maior transcendência da proposta de lei em análise. Não teria inteira pertinência, nesta oportunidade, um aprofundado estudo sobre o papel do legislador e do julgador, como criadores do direito Certamente cabe ao primeiro «criar a lei», mas esta não é necessariamente um passo em frente ou em diversa direcção relativamente à evolução das relações sociais ou das relações económicas, é antes, muitas vezes, uma disciplina escrita de normas já aceites na convivência social, ou tornada a esta convivência necessária por efeito da evolução dos costumes ou da influência dos doutrinadores, economistas, sociólogos ou juristas.

Acresce que, nos tempos modernos, manifestam-se certas tendências que envolvem um apelo mais vivo à função do julgador como criador do direito (renascimento da ideia do direito natural, movimento do direito livre, pensamento tópico-retórico, etc.)

Neste contexto, a actividade do juiz é também da maior importância para a formação do direito.

Como observou justificadamente René David, «La doctnne du droit naturel connait de nos jours un renoveau Lês tenants du positivismo, eux-mêmes, ont abandonné ae mythe de Ia Jpi, td qu'il étaït presente au xix siècle, ils reconnaissent à présent lê role créateur du juge; nul ne croit plus que Ia loi soit source unique du droit et qu'une opération purement logique dMnterprétation de Ia loi puisse en tous lês cãs mener à découverte de Ia solution de droit qui s'impose»(3)

No nosso Código Civil encontra-se afloração do poder criador do juiz nomeadamente quando, depois de firmado o dever de obediência à lei (artigo 8 º, em correlação com o artigo 4 º da Constituição Política), se dispõe que a interpretação não deve cingir-se à letra do preceito legal, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo (artigo 9º), para os casos de lacuna da lei, quando permite que a situação seja resolvida segundo a norma que o próprio intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema (artigo 10º), e aind a nos numerosos casos em que se apela para a equidade.

(3) Les Grands Sytèmes de droit Contemporans, p 109.

Sob outro ângulo, importa relacionar a especialização com a unidade da ordem jurídica. Unidade que deve existir ao nível da legislação e também ao nível jurisdicional ou funcional, cumprindo prevenir o que possa, a qualquer dos níveis, tender para o fraccionamento ou para a desconexão.

Cada ramo do direito constitui parte de um todo harmónico, e utiliza conceitos que têm a sua sede noutros ramos, nomeadamente no direito civil. Há, assim, frequentes zonas de encontro ou de convergência dos diversos ramos, a exigir dos juizes uma formação que lhes permita dominá-las.

Para exemplificar, podem referir-se, entre outras, a da interpretação das expressões legais, a das questões prejudiciais e a dos efeitos do caso julgado

É certo, porém, que respondem a esta objecção a formação global garantida pelos estudos universitários, o serviço indiferenciado que é prestado nos primeiros graus de jurisdição e a própria permanência dos magistrados num quadro único Resposta satisf atória, segundo o reconhecimento feito na generalidade dos países, e para a qual se não afigura divisável alternativa que não contenda com o equilíbrio na distribuição do serviço e com o funcionamento de um colégio de julgadores que se não constitua adrede para o julgamento de determinadas causas. O que se acabou de resumidamente versar denuncia desde logo a tendência universalista e global do direito, supondo uma formação desejável dos juizes de igual modo universalista e global.

O juiz que vir o mundo do direito pelo ângulo de um só dos seus ramos está sujeito naturalmente a uma visão estreita ou acanhada das ocorrências ou fenómenos sociais que lhe são subjacentes.

Disse-o há muitos anos já (em 1929) Angel Ossorio, de forma lapidar:

El más noble conato humano es Ia elevación, Ia generaliza t lón, el domínio dei horizonte.

En el Foro no debe haber tabiques entre lo civil, lo penal, lo contencioso, lo canónico, lo gubernativo v lo militar. Muy lejos de esto, mul-titud de problemas ofrecen aspectos vários, v asi, por ejemplo, para defender una concesión de aguas hay que batallar en Io contencioso frente à Ia arbitranedad de Ia Administración, v en Io civil contra Ia extralimitación de un usuário, v en Io penal para castigar unos danos o un hurto(4).

Repete-o presentemente, também em Espanha, a Comisión General de Codificación.

Todo Juez precisa de una formación jurídica unitária v completa, que abarque todas Ias ramas dei Derecho, único modo de alcanzar una con-cepción jurídica general, imprescindible para el desempeno de Ia función de juzgar, va que el Derecho, k vida sociojurídica, no puede dividir-se en compartimentos estancos (5)

Não se trata de mera especulação conceituai. A sectorização do conhecimento é antes um perigo real.

Pois nos domínios profissionais em que a especialização mais vincadamente tem firmado arraiais é

(4) El Alma de La Toga, PP 161 e seguintes