Não temos, pois, qualquer dúvida sobre o conceito do que seja uma região vinícola demarcada, tal como a define a proposta de lei.

Todavia, o que se considera na mesma proposta como zona vinícola tradicional já nos sugere algumas dúvidas na sua determinação, pois do que resulta do n º 3 da citada base II parece que as regiões vinícolas tradicionais são apenas as que produzem vinhos de qualidade, os quais não reúnem, todavia, condições para merecerem a distinção de uma denominação de origem, sem que se tenha em linha de conta a tradição da cultura da vinha nas respectivas zonas.

Esta definição é extremamente vaga e imprecisa para não deixar de preocupar tantas zonas tradicionalmente vitícolas que existem no País e cuja qualificação como zonas tradicionais, nos termos do n º 3 da base n, fica dependente de uma classificação de os seus vinhos serem ou não de qualidade

Parece-nos extraordinariamente aleatória esta disposição, pois o que seja um vinho de qualidade depende de tantos e tais factores de apreciação, graduados em escala de valores tão vasta, que pode levar a injustiças, conducentes a graves problemas regionais, sociais e económicos.

Entendemos, por isso, que no n º 3 da base II se deverá precisar por forma mais clara o que se vai considerar, para o efeito do condicionamento do plantio da vinha, uma zona vinícola tradicional, pois dessa classificação resultam prioridades e vantagens previstas nesta proposta de lei, nomeadamente no que respeita não só a novas plantações, mas às reconstituições e transferências de vinhas existentes.

Região tradicional tem de ser toda aquela onde ao longo de muitos anos se cultiva a vinha, numa tradição que se transmite de gerações em gerações, onde a prática e a experiência ensaiaram castas mais apropriadas às condições ecológicas da região, onde os homens se fixaram e especializaram na cultura da vinha, e não só nas técnicas culturais, mas na mecânica da sua comercialização

T odos temos consciência do apurado sentido do agricultor tradicional, que adopta nas suas explorações as culturas que a sua experiência lhe diz serem as mais rentáveis e mais apropriadas às suas terras, tendo em atenção as condições do clima, do solo, de humidade e tudo o mais que a sua observação lhe ensinou.

Pensamos ser esta a ideia de tradicionalidade que deve presidir à classificação das zonas onde a vinha se instalou há muitos anos.

É evidente que se deve atender à boa qualidade do vinho produzido nestas zonas tradicionais, embora tenhamos de vencer a dificuldade apontada de determinar qual o grau de qualidade que pretendemos atingir.

Certamente que no conceito de zona tradicional, que deixamos desenhado, fica implícita a ideia de que os vinhos nela produzidos têm de ser de boa qualidade, pois a experiência de dezenas de anos, de séculos até, não pode ter deixado de levar os homens a apurar as castas e as técnicas para melhorarem os seus vinhos, e também não seria admissível que se mantivessem tantos anos essas zonas vinícolas (p que lhes dá até o carácter de tradicionais) se os seus vinhos não tivessem qualidade para se imporem nos mercados

Nesta linha de pensamento, a vasta zona do Ribatejo integra-se perfeitamente no conceito de zona vinícola tradicional, porventura das mais antigas da Península, pois sabemos que os Romanos, cultivadores da vinha em larga escala, a teriam trazido quando aqui se fixaram, durante as fases de formação e expansão do seu império, fazendo-a desenvolver e prosperar, num clima que lhe era propício, através das suas excepcionais e evolutivas técnicas agrícolas

As condições ecológicas do actual Ribatejo eram extraordinariamente propícias ao desenvolvimento destas ampelídeas, que talvez até, segundo alguns historiadores, aqui tivessem sido introduzidas pelos Fenícios, que, utilizando a via - fluvial, ao fundarem as suas feitorias na costa atlântica, tivessem subido o velho «Tagus» e procurado esta região mais fértil para implantarem a sua agricultura.

«É mesmo de supor que pertençam à região ribatejana os pergaminhos da mais antiga mancha vinícola desta faixa ocidental da antiga Hispânia, que há mais de oito séculos se chama Portugal.» Assim afirma no interessante trabalho sobre a viticultura ribatejana o investigador e ilustre técnico regente agrícola Cláudio Gonçalves.

Não restam dúvidas, porém, de que, quando da fundação da nacionalidade já existiam vinhas no Ribatejo, pois no foral de D Afonso Henriques à cidade de Santarém, em 1170, determinava-se que «Os peões devem dar a oitava de pão, vinho e linho »

Já no reinado do nosso primeiro rei, e segundo o citado investigador, o vinho era um importante produto agrícola, com determinações de comercialização, e, facto curioso, já nesse tempo se defendia a pureza do vinho e se aplicavam sanções aos prevaricadores.

No reinado de D. Sancho I foi extraordinariamente incrementada a agricultura, o mesm o acontecendo com os reis seus sucessores, e no testamento de D Sancho II pode ler-se: «Deixo ao Mosteiro de S. Jorge parte das minhas vacas e ovelhas e metade das minhas vinhas de Alvisquer, termo de Santarém, e outra metade ao meu chanceler do Arando Furjás e a minha adega de Marvila, com todas as suas cuvas» Alvisquer, segundo refere D. Luís Cardoso de Meneses (Margande) na sua curiosa publicação A Vinha no Ribatejo, é o actual Campo do Rossio, na margem direita do Tejo, junto à Ribeira de Santarém.

No reinado de D Dinis, o rei lavrador, o poeta da corte, Estêvão da Guarda, cantou as vinhas de Vaiada, nos curiosos versos:

D'uma gram vinha que tem em Vaiada Alvar Rodrigues nom pod'aver prol Vedes porqui, ca el nom cura sol De a querer per seu tempo cavar e a mays d'ela faz por adubar pêro que tem à mourisca podada

Nessa época, a produção de géneros agrícolas, nomeadamente a do vinho, excede o consumo interno, e Portugal exporta para a Flandres, Inglaterra, Bretanha e Catalunha cereais, vinho, azeite e fruta seca.

Também D. Pedro I, pela Lei de 18 de Fevereiro de 1364, determinou:

Aos homens bons de Santarém... outro sim em razão das lavras de vinhas, tenho por bem, que os serviçais da vinha sejam todos inscritos num livro do concelho...