corpo, embora sem referência expressa - o que não se estranhará há vinte anos - ao problema das transplantações:
O doente não pode conferir mais direitos do que os que possui. O ponto decisivo, nesta questão, é a licitude moral do direito que o doente tem de dispor de si mesmo. Aqui se levanta a fronteira moral da intervenção do médico, que age com o consentimento do seu doente.
Pelo que respeita ao doente, este não é senhor absoluto dele mesmo, do seu corpo e do seu espírito. Não pode, portanto, dispor livremente de si como lhe aprouver O motivo pelo qual ele age não é só por si nem suficiente nem determinante O doente encontra-se ligado à ideologia imanente fixada pela Natureza Possui o direito de uso, limitado pela finalidade natural, das faculdades e das forças da sua natureza humana Pelo facto de ser usufrutuário, e não proprietário, não tem um poder ilimitado para praticar actos de destruição ou de mutilação de carácter anatómico ou funcional Mas, em virtude do princípio da totalidade do seu direito de utilizar as funções do organismo como um todo, pode depor de partes individualizadas para as destruir ou mutilar, enquanto e na medida em que isso seja necessário para o bem do seu próprio ser em conjunto, para assegurar a sua existência ou para evitar e, naturalmente, para reparar prejuízos graves e duradouros que de outra forma não poderiam ser afastados ou reparados.
Mais recentemente, em Março de 1966, um teólogo autorizado, R P Bouchaud 2, que estudou o problema específico das transplantações, exprime-se pela forma seguinte:
Pôr em dúvida a legitimidade da doação de um órgão necessário à sobrevivência de um outro ser humano pode parecer paradoxal e mesmo escandaloso da parte dos que professam uma moral de serviço e mais ainda da parte dos que aderem ao Evangelho: pois não é uma forma eminente de caridade este acto pelo qual se dá não unicamente aquilo que se possui, mas qualquer coisa de nós mesmos?
De um lado, invoca-se uma irrecusável necessidade de aproveitar esta nova oportunidade, que a medicina oferece, de valorização do corpo humano,
utilizado como reserva de órgãos e tecidos e com capacidade para levar a outro corpo, alheio, um socorro decisivo, do outro lado apontam-se, em sentido contrário, aspectos de ilicitude, de imoralidade, de quebra de deontologia médica e de antijuridicidade.
De um quadrante, a apetência natural do homem para o bem, para se realizar e dignificar pela ajuda desinteressada, altruísta e humanitária ao seu semelhante, do outro, a força de um racionalismo implacável e cego, que fica indiferente ao sofrimento alheio.
Efectivamente, os textos legislativos são raros, neste domínio, e a doutrina também não é abundante Quanto à jurisprudência, ela tende para, com diversas fundamentações, buscar fórmulas conciliatórias conducentes à licitude das transplantações, baseada, sobretudo, no consentimento do dador.
A legislação, mais uma vez atrasada em relação à realidade dos factos da vida corrente, tenta todavia recuperar o tempo perdido, em certos países, como o nosso, estipulando normas jurídicas que, principalmente, se destinam a prevenir abusos, precipitações e imprevidências. Para o efeito, são fixadas, sempre, as condições técnicas e jurídicas das intervenções e estipulam-se sanções legais rigorosas para a inobservância dos seus limites.
O direito vê, assim, alargados suficientemente os seus horizontes, tomando uma altura compatível e paralela ao desenvolvimento das ciências médicas, a fim de não só não entravar o seu progresso mas, inversamente, estimulá-lo e encorajá-lo.
Divisasse, pois, na mente do legislador, uma evolução para o acatamento de uma realidade moral, sim, mas isenta de pensamentos egoístas e de obstáculos restritivos, o que tem simplificado as coisas no sentido da aceitação geral da licitude das intervenções em causa.
Em termos jurídicos, poderá o homem deter um direito de disposição de um órgão do seu próprio corpo, em proveito de outro homem? E não cairá
2 "Réflexion Morale", in Cahiers Laennec - Les Greffes d'Organes, p. 41.