na alçada da lei a equipa médica responsável pela intervenção que é inerente à recolha do órgão e à sua transplantação? A estas interrogações correspondem situações que podem estar na base de conflitos de competência entre a intenção puramente médica, com a sua deontologia particular, e a intenção especificamente jurídica, e daqui surgirem problemas concretos de direito, a este competindo considerá-los nos quadros do seu contexto e intencionalidade próprios, isto é, formulando-os dentro de determinadas coordenadas.

Se a ideia ou intenção fundamental do direito se compreende pela realização de uma «sociedade justa», com a constituição de um estatuto que assuma o justo equilíbrio dos valores em causa e comunitariamente reconhecidos, resulta, para o presente caso, que se trata, antes de mais, de ponderar a relação entre dois valores ou conjuntos de valores que para a ordem jurídico-social são igualmente valiosos a dignidade ética, a vida, a integridade física e a saúde tanto do dador como do receptor.

Relação que terá de ser vista integrada de um outro elemento - o médico agente da i ntervenção cirúrgica-, o qual nessa actuação mediadora é chamado a cumprir uma função específica, sob os pontos de vista científico e humano, de que lhe resulta uma responsabilidade muito particular.

Os dois referidos valores ou conjunto de valores e a outra função, actuada por um terceiro, são, pois, as coordenadas do problema jurídico e no quadro das quais ele terá de ser ponderado. Um outro aspecto a ter em conta é o de não se estar em presença de uma verdadeira «situação limite», em sentido jurídico, isto é, de uma típica e autêntica situação de estado de necessidade. Neste tipo de situações a configuração delas oferece-se já em termos de um conflito irredutível entre valores ou deveres, bens ou interesses, do qual só se poderá sair com o sacrifício de um dos elementos do conflito. Trata-se dos casos típicos de vida por vida, de conflitos de deveres do mesmo valor, etc.

O problema em análise tem de próprio o pretender-se o sacrifício de algo que não está vinculado com o elemento beneficiário por qualquer daquelas situações limite de necessidade, levanta-se aqui, antes, a hipótese de um sacrifício deliberado ou de um sacrifício em dádiva, a favor de outrem, e não imposto pela necessidade.

Por isto não pode o direito medir a validade deste sacrifício em dádiva nos mesmos termos em que mede o sacrifício em necessidade. Consequentemente, haverá que ter em conta vários aspectos, que convém concretizar. Começando pelo dador. A validade da disposição quanto ao objecto, avaliando em que condições ele será disponível, cabe aqui, antes de mais, o problema dos direitos de personalidade e da sua relativa indisponibilidade,

b) A finalidade da disposição, que se repercute também na sua própria validade quanto ao objecto,

c) A autonomia, absoluta ou relativa, da disposição,

d) Os termos formais e as circunstâncias da disposição,

e) Os efeitos da disposição, desde logo não podendo traduzir um presumível sacrifício da personalidade, da vida e da saúde normal do dador.

Quanto ao receptor, haverá também aspectos correspondentes - objecto, finalidade, autonomia, termos e circunstâncias, e efeitos-, mas olhados agora sob o ângulo da aceitação, isto é, do benefício que resulta da doação.

Relativamente ao terceiro funcionalmente intermediário (o médico operador), deverá exigir-se-lhe não só o respeito de todas as condições atrás referidas para o dador e o receptor, como ainda submetê-lo à responsabilidade médica em geral (leges artis, deontologia, etc. ) e impor-lhe que a finalidade do acto operatório seja exclusivamente terapêutica.

A posição qualificada do médico no desempenho de uma função que lhe é própria impõe-lhe ainda um outro dever particular o de concorrer com um esclarecimento cientificamente correcto e completo para que nos elementos pessoais da relação (dador e receptor) se verifiquem as condições de validade axiológico-jurídica da doação e da aceitação, especialmente a autêntica e autónoma disposição Isto não se verificará se houver deficiente esclarecimento dos efeitos (riscos, fins, probabilidades de êxito, etc.).

A falta de cumprimento, pelo médico, da condição que lhe impõe uma intervenção com fim exclusivamente terapêutico e, bem assim, da outra que o obriga ao esclarecimento do dador dos efeitos da operação deverá implicar a absoluta ilicitude da intervenção, por ofensa à dignidade ética tanto do dador como do receptor O que só por isso sujeitará o médico a responsabilidade penal.

Por sua vez, a não observância das condições atrás referidas e que dizem respeito ao dador e ao receptor e, bem assim, o incurso em responsabilidade médica, por ofensa das leges artis, devem resultar não só em responsabilidade penal (homicídio, ofensa corporal, atentado contra a liberdade, etc ), como também em responsabilidade civil.

A violação de normas deontológicas e a omissão do dever de esclarecimento completo do dador trazem ainda, para o médico, responsabilidade disciplina 15. Respeitadas todas as condições, haverá que oferecer-se este resultado da intervenção benefício vital do receptor que não afecte a sua personalidade mordi e não seja obtido à custa do sacrifício da vida, saúde e dignidade moral do dador. No direito criminal alemão aceita-se o princípio de que as transplantações de fim exclusivamente terapêutico devem ser juridicamente qualificadas nos mesmos termos em que o são as intervenções médico-cirúrgicas em geral.

A posição dominante da jurisprudência orienta-se para considerar o acto, objectivamente, como uma ofensa corporal, ou homicídio (caso resulte a morte), isto é, entende que os respectivos tipos legais de crimes são preenchidos, o que implica a exigência de uma causa justificativa, que seria o consentimento do ofendido.