Na doutrina alemã, e quanto às intervenções cirúrgicas em geral, verificam-se divisões de opinião. Uma parte sustenta que não há lugar a falar-se de ilicitude (e de tipicidade), e que, portanto, não seria necessária a causa justificativa, e isto com fundamento na teoria da adequação social, no fim objectivo de cura, que excluiria o fim objectivo criminal pressuposto no tipo, e na inexacta caracterização jurídico-criminal desses comportamentos como tipos dolosos de ofensa corporal ou homicídio. O que se verificaria, mesmo no caso de não haver consentimento, seria a violação da liberdade do doente, mas este caso não estaria tipicamente incriminado e, portanto, não haveria ilicitude, em virtude do princípio nullum crimen sine lege.
Relativamente ao problema específico das transplantações, a doutrina alemã distingue a posição do dador da do receptor.
Quanto ao receptor, uns aceitam a posição anteriormente referida de não ilicitude, desde que não tenha havido violação da s leges artis e o fim da operação tenha sido exclusivamente terapêutico, outros distinguem os casos de êxito ou de fracasso técnico sem afectação da saúde ou da vida do doente e os casos de êxito com prejuízo grave para este. Na primeira hipótese, aplicar-se-ia a doutrina da não ilicitude, na segunda, haveria objectivamente ilicitude, mas a punição seria excluível por falta de dolo ou de negligência.
Quanto ao dador, a ilicitude do acto é justificada pelo consentimento do ofendido, nunca pelo estado de necessidade, dada a grave violação da liberdade e integridade física do dador, mas entende-se que o consentimento deve ser só pessoal, e nunca prestado por representante legal3.
No direito privado alemão discute-se também o problema das transplantações, no âmbito dos direitos de personalidade.
Ah! se admite a disponibilidade de partes do corpo em benefício de outrem, desde que haja consentimento, ausência de ofensa aos bons costumes e finalidade exclusivamente terapêutica4.
A ideia fundamental é a de eximir de responsabilidade o autor de um delito necessário, ainda que, no caso, não se trate realmente de delito, tendo em vista a ausência absoluta de culpa e o fim de prejudicar alguém, mas pelo contrário um objectivo terapêutico e humanitário. De facto, o julgador encontra-se perante uma situação incompatível com a aplicação da lei penal, situação correspondente ao adágio, a necessidade faz lei. Ou então a situação daquele que considera sem hesitações que o único meio de evitar um mal maior é causar um mal menor mutilar um corpo humano, do qual se extrai um órgão, é um mal, mas salvar uma vida pela utilização daquele órgão pode ser um bem superior!
A jurisprudência francesa, diga-se, mostra-se rigorosa na admissibilidade da justificação, exigindo que se esteja perante um perigo iminente, o bem sacrificado seja de valor inferior à vantagem obtida; e a violação da lei surja como um meio adequado para superar o perigo iminente.
Reconhece-se, por outro lado, que a invocação do estado de necessidade não é suficiente para ilibar o médico operador da sua responsabilidade, quando por si só decide a intervenção. Efectivamente, a recolha do órgão deverá revestir a forma de verdadeira doação, sendo sempre necessário obter o consentimento formal do dador. A recolha deverá, ainda, corresponder a um interesse legítimo e não ofender os bons costumes Os riscos deverão ser comparados com as possibilidades de sucesso. E, por último, deverá ter-se em boa conta a necessidade de consentimento, também esclarecido, do destinatário da doação, afinal o que dela principalmente se aproveita.
Em rigor, o dador não é senão um meio ou instrumento utilizado pelo médico para proceder às operações de recolha, e transplantação Daqui que o médico não possa, sem incorrer em grave responsabilidade, efectuar a recolha de um órgão sem o prévio consentimento formal e inequívoco daquele que vai ser objecto de uma mutilação ou ablação, no interesse de outrem.
Em princípio, somente o interessado deverá pronunciar-se, sem admissão de mecanismos de substituição de vontade, devendo também fazê-lo em estado de completa liberdade, física e psíquica, eximido a quaisquer pressões, coacções ou incentivos materiais.
Por isto, surge um problema especialmente melindroso quando o dador se encontra fora de posição legal para tomar uma decisão válida, seja pela sua menoridade, por exemplo, seja pela precariedade do seu estado mental. Neste último ponto, a Câmara, não sem hesitações, concluiu pela inadmissibilidade do consentimento do dador ser suprido pelo seu representante legal.
Para o efeito, e para além de outras razões, a Câmara ateve-se no artigo 8.º, n.º 1, da Constituição, que reconhece a integridade pessoal como direito de personalidade, parecendo difícil admitir a renúncia em nome de outrem a tal direito tão estritamente pessoal.
3 Ver, por todos, ed Schmidt, Der Arrt im Strafrecht, pp 69 e segs., P. Bockelmann, Strafrecht des Arztes, pp 97 e segs., R. Maurach, Deutsches Strafrecht, 3.º ed., I, pp 285 e segs., e II, pp 71 e segs, e Welzel, Das deutsche Strafrecht, 5.ª ed., pp. 68 e segs., 78 e segs. e 227 e segs.
5 Cf. Paul-Julien Doll, La Discipline des Greffes, des Transplantations et des autres actes de disposition concernant le corps humain, pp. 59 e 60.
6 No direito italiano, à parte a lei sobre as transplantações de rins, o problema é largamente tratado também no domínio dos direitos de personalidade, com soluções análogas às do direito alemão (ver A de Cupis, I Diritti della personalità, I, pp 110 e segs.) Quanto ao direito português, deve referir-se o preceituado, relativamente às intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, nos artigos 162.º e 163.º do anteprojecto do Código Penal da autoria do Prof. Eduardo Correia (cf. Boletim do Ministério da Justiça, n.º 158, p. 46).