Se, em caso de recolha s transplantação de um rim, por exemplo, o interesse médico legítimo não parece facilmente discutível, não poderá ignorar-se, para tal, a vantagem ou benefício concreto a obter pelo receptor. O dador, que sofreu uma lesão irreversível ou grave, não poderá pretender senão uma compensação de ordem moral, e daqui que seja absolutamente essencial, do ponto de vista social, que o sacrifício consentido pelo dador não seja em vão.

Segundo a boa doutrina, aceita-se, pois, que a efectivação da transplantação fique dependente da observância da condição de que as probabilidades de êxito da operação, para o destinatário, ultrapassem de longe os riscos assumidos pelo dador.

É preciso não somente excluir o sacrifício da vida do dador, mas mesmo evitar uma diminuição importante da sua personalidade.

A doação de um órgão deve ser sempre expressão de solidariedade humana e de altruísmo, sendo precisamente por isso que importa limitar ao máximo os ri scos corridos pelo dador Daqui que o médico tenha a obrigação de, sob pena de incorrer em responsabilidade penal e disciplinar, verificar sempre e cuidadosamente a aptidão física e psíquica do dador, a fim de comprovar se o seu estado geral de saúde é compatível com a operação em vista. O problema das transplantações à face do ordenamento jurídico português Como se refere no preâmbulo da proposta de lei em análise, existem entre nós normas legais relativas à colheita de órgãos ou tecidos em cadáveres (Decreto-Lei n.º 45 683, de 25 de Abril de 1964) e de produtos biológicos humanos para hofilização (Lei n.º 1/70, de 20 de Fevereiro). No Código Penal encontram-se alguns preceitos de interesse que poderão servir para se tentar uma construção que justifique a licitude das recolhas e transplantações em causa e, consequentemente, confira pleno apoio à proposta de lei em apreciação. Recorde-se o artigo 29.º, n.º 5, do Código Penal e as correspondentes explanações da doutrina7

Notar-se-á, primeiramente, que a lei pune quem presta ajuda a alguma pessoa para se suicidar (artigo 354.º do Código Penal) e ainda aquele que intencionalmente, por mutilação, consegue tornar-se incapaz para cumprir as obrigações de serviço nas forças armadas (artigo 56.º da Lei n.º 2135, de 11 de Julho de 1968).

Estas punições parecem facilmente compreensíveis à luz da doutrina ética, já explanada anteriormente, que reprova a atitude do homem quando atentatória da sua integridade, por violação da sua imagem e semelhança de Deus, portanto, violadora da exigência ontológica da realização do seu fim último

Estranhar-se -á que, na lei penal, não seja punida a automutilação senão quando o agente se proponha tornar-se incapaz para a prestação do serviço militar.

A explicação da omissão poderá encontrar-se na hesitação do legislador, que terá reconhecido a sua dificuldade de apreciação ética directa do facto sem a consideração concreta dos fins, dos meios e das circunstâncias em que o homem, ao arrepio do seu apetite de conservação, voluntariamente se destrói.

E também porque, estando o corpo compreendido na esfera jurídica pessoal, a pessoa tem sobre ele, enquanto viva, poder de disposição, embora não absoluto.

No plano da justificação do facto ou até da directa exclusão da ilicitude, pode invocar-se que o consentimento se baseia em razões humanitárias e piedosas Para além disso, e já no plano de culpa, as dificuldades poderão ser superadas na moderna problemática do direito criminal pela subjectivação desse direito, construindo-o a partir do agente e da sua personalidade.

O cerne do problema reside, pois, na validade da aplicação à hipótese do instituto do consentimento do ofendido, e em que condições. A nossa lei estipula que o médico que, como tal, causar, dolosa ou culposamente, um dano injusto a outrem se constitui na obrigação de o reparar Mas a lei estipula também (artigo 77.º do Estatuto da Ordem dos Médicos) que, antes de operar um doente, o médico deve obter o seu consentimento (ou o dos seus pais ou tutores, se o doente for menor). Daqui se infere que, mau grado o consentimento do ofendido, poderá haver casos de responsabilidade criminal para o médico quando, no exercício da sua profissão, provoque lesões corporais não justificadas, tornando ilícito um acto por este ter ultrapassado os limites legais daquele exercício. Também importa considerar, para a tentativa de demonstração de que o consentimento do ofendido exclui, em princípio, a antijuridicidade da doação de um órgão do próprio corpo, para efeito de implantação num semelhante, alguns outros preceitos do sistema legislativo português.

1 O acto lesivo dos direitos de outrem é lícito, desde que este tenha consentido na lesão.

2. O consentimento do lesado não exclui, porém, a ilicitude do acto, quando este for contrário a uma proibição legal ou aos bons costumes.

3 Tem-se por consentida a lesão quando esta se der no interesse do lesado e de acordo com a sua vontade presumível.

Vaz Serra 8 escreve a respeito que "desde que a responsabilidade civil se destine a tutelar interesses privados, deve ser lícito, em princípio, ao interessado renunciar a essa tutela e afastar, assim, a antijuridicidade do acto com que terceiro lese esses interesses, tal eficácia só sendo admissível quando os direitos protegidos sejam disponíveis, isto é, quando se possa renunciar à tutela legal deles.

O consentimento do lesado, ou do seu representante legal, é um negócio jurídico unilateral e deve supor a capacidade do seu autor ou o assentimento do seu representante legal".

7 Ver, por exemplo, Eduardo Correia, Direito Criminal, com a colaboração de Jorge de Figueiredo Dias, vol. II, pp. 18 e segs.