E também é certo que, no domínio da especialização profissional, há normalmente uma cultura doentia pela exaltação da própria especialidade e um expressivo desinteresse por tudo que não seja a actividade sectorial da respectiva função.

Mas o problema aqui é outro. Não se trata propriamente de um caso de especialização ou de uma consequência da especialização. Trata-se, sim, de uma omissão ou carência de raiz mais funda, que antecede e sobreleva o fenómeno da especialidade profissional. Referimo-nos à falta de uma cultura humanista.

E assim é que tanto podemos detectar este defeito no médico de clínica geral como no juiz de uma comarca de província (onde a actividade forense desconhece qualquer especialização), como, ainda, nos domínios do mais requintado tecnocrata.

A realidade desta carência, que já não é nova, mereceu a Ramalho Ortigão, no último quartel do século XIX, uma profunda e pertinente reflexão. Escreve ele nas suas memoráveis Farpas.

Qualquer que seja a especialidade de cada um, ninguém hoje pode ser indiferente à exegese de toda a evolução humana. Ninguém pode impunemente prescindir de uma filosofia ou de um método filosófico, pelo menos, para a coordenação de todos os fenómenos físicos e morais que constituem o sistema do nosso universo. Sem esta condição essencial, o desalento vence-nos; a especialidade amesquinha o nosso critério, torna-nos estranhos à grande solidariedade humana, a controvérsia, sempre que nos toca, despenha-nos na misantropia, e falta-nos, finalmente, o doce refúgio moral que todo o homem de letras deve ter na elevação da sua alma, dentro do seu próprio ser, contra a calúnia, contra a inveja, contra a rotina, contra a impopularidade e contra a derrota. (As Farpas, vol. III, p. 33, edição integral da Livraria Clássica Editora)

Quer dizer: todo o homem dado às tarefas intelectuais necessita, como exigência estrutural da sua cultura, de uma visão global de todos os fenómenos que constituem o sistema articulador do mundo e da convivência entre os povos.

O Sr Ávila de Azevedo: - Muito bem!

O Orador: - Como Angel Ossário, que o parecer da Câmara Corporativa transcreve, também nós afirmamos aquilo que há de mais nobre no conhecimento humano «é a elevação, a generalização, o domínio do horizonte».

Mas esta necessidade de uma concepção global e unitária da cultura impõe-se como uma exigência fundamental da especialização ao homem do direito. Assim como se lhe impõe de igual maneira (e como já se tentou evidenciar) a necessidade de uma visão integral e generalizada do sistema jurídico, que será sempre um ponto de partida e um alicerce de desenvolvimento no processo da própria especialização.

O ilustre Procurador que assinou vencido o parecer da Câmara Corporativa, de entre os vários fundamentos com que doutamente justificou a sua declaração de voto, registou particularmente duas ordens de razões por um lado, a necessidade de o juiz «possuir uma concepção integral e unitária do direito» e, pelo outro, a «actual forma de recrutamento dos magistrados judi ciais».

Quanto ao primeiro ponto, já procurámos demonstrar (e em nossa opinião demonstrámos) a insubsistência total da motivação invocada. A especialização, segundo nos parece, longe de contrariar a visão integral e unitária do sistema jurídico, antes a pressupõe e alimenta.

O Sr. Gonçalves Rapazote: - Muito bem!

relativamente à «inevitável deformação profissional» dos juizes que fizeram carreira (mesmo já como juizes) pelas bancadas do Ministério Público, parece-nos inevitável concluir que a possível influência de uma tal deformação tanto se verifica havendo tribunais especializados como não os havendo.

Mais o argumento invocado pode ser até reversível e provar em sentido inverso. Basta que o Conselho Superior Judiciário, reconhecendo o facto de uma tal deformação profissional neste ou naquele juiz, o afaste da secção criminal designando-o para a respectiva secção cível. A especialização viria a ter, assim, desta forma, um efeito significativamente correctivo.

Afigura-se-nos, todavia, pertinente uma abordagem perfunctória e resumida da questão relativa ao recrutamento dos magistrados judiciais e do Ministério Público, que mutuamente se interpenetram e se explicam.

O assunto tem sido frequentemente considerado nos últimos tempos em termos de renovação e aperfeiçoamento d a organização judiciária.

O último diploma legislativo sobre a matéria (Decreto-Lei n.º 414/73, de 22 de Agosto) introduziu uma certa abertura no recrutamento da magistratura judicial e do Ministério Público. Mas foi um passo tímido, incipiente e, sobretudo, atrasado no tempo.

Efectivamente, inovar quanto ao Ministério Público, permitindo apenas a nomeação de delegados do procurador da República, independentemente de concurso, aos indivíduos que tenham classificação universitária igual ou superior a 14 valores e com exercício de funções de delegado interino ou de subdelegado