a questão não puder ser resolvida pelos casos análogos será resolvida segundo a norma que o propino julgador criaria se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema.

Por outro lado são numerosos os casos em que o juiz deve decidir segundo juízos de equidade.

Por isso cada vez mais se impõe que o juiz seja, além de um homem bom, um profundo conhecedor da ciência jurídica.

Nesta altura, porém, não podemos deixar de observar que a complexidade da vida social nos seus múltiplos aspectos é cada vez maior.

Em virtude do avanço da técnica e do cada vez maior número de necessidades que o progresso faz aparecer na vida dos homens em sociedade, as relações da vida social que devem ser tuteladas pelo direito são dia a dia mais numerosas e complexas. Deste modo, o campo de aplicação da ciência jurídica vai sendo sempre mais vasto, paralelamente com o que sucede no domínio das outras ciências. Já vai muito longe o tempo em que os grandes espíritos podiam abarcar toda ou quase toda a ciência da sua época.

Hoje em dia não é assim. Mesmo as melhores inteligências não podem abarcar completamente todos os ramos da ciência que professam e disciplinas conexas. Também assim acontece no que diz respeito à ciência jurídica. A actividade intelectual do jurista, designadamente do juiz ou do advogado, para ser profícua, não pode dispersar-se por todos os ramos da ciência do direito e disciplinas conexas, antes deverá incidir predominantemente sobre certas zonas do domínio dessa ciência. O jurista, como qualquer outro intelectual, terá de tender para uma certa especialização.

Digo certa especialização, porque o jurista, para o ser efectivamente, não pode confinar-se exclusivamente a determinado ramo do direito.

O ordenamento jurídico que regula e comanda a vida de uma sociedade constitui um todo incindível, cujas partes não podem ser adequadamente compreendidas se as desprendermos das suas relações com o todo. Os diversos ramos do direito são interdependentes tanto sob o ponto de vista gnosiológico como da sua aplicação prática dos múltiplos casos da vida real.

Em cada disciplina jurídica há conceitos que são comuns a outras disciplinas.

Há regras de direito que são elementos normativos da hipótese ou tatbestand de outras normas jurídicas enquadradas em ramos de direito diferentes. Por isso, estas últimas normas não poderão ser adequadamente entendidas sem simultaneamente se conhecerem as primeiras Há relações jurídicas de direito público que têm na sua base relações jurídicas de direito privado e, vice-versa, relações privadas que supõem a existência de relações públicas.

Os casos da vida real desdobram-se frequentemente em relações de um ou outro tipo.

Por isso, a resolução das relações de direito público envolvem, nesses casos, previamente a resolução das relações de carácter privado ou, ao invés, para a definição destas últimas é indispensável a resolução daquelas outras.

Um criminalista, um fiscalista ou administrativista têm de aplicar a cada passo normas do direito civil ou comercial.

Argumenta-se ainda, contra a especialização, que esta gera a «tendência para a limitação do conhecimento ao sector escolhido, para valorar este com prejuízo dos demais, para ter, enfim, uma visão mais estreita ou mesmo deformada do conjunto da situação interessada».

Que concluir de tudo isto?

Que se deve condenar a especialização?

É evidente que não.

A especialização é imposta pelas exigências da vida moderna, também nos domínios da ciência jurídica. Mas tem de ser uma especialização moderada. Aqui, como em todas as coisas, o que é preciso é atingir o equilíbrio, a justa medida entre o excesso e o defeito.

O jurista, ao dedicar-se predominantemente a determinado ramo do direito, não pode deixar de dedicar também a sua atenção a outros ramos, sobretudo aos que têm maior ligação com aquele Se é certo que o homem do direito não pode limitar-se a ser como o matemático Roberbal, que só sabia de matemática e que, ao assistir uma vez no teatro a uma peça, perguntou que teorema ela demonstrava, também não é menos verdade que não pode pretender ser um Pico de Mirândola apto a discretear de ommi re scibili nos domínios da ciência jurídica.

Aqui os inconvenientes da especialização poderão ser afastados se ela for admitida só a partir de certa altura da carreira jurídica, principalmente no que diz respeito aos serviços de justiça.

É o que está a acontecer na organização judiciária portuguesa.

Nos nossos tribunais a especialização aparece já, na primeira instância, com os tribunais cíveis, varas e juízos, e tribunais criminais na comarcas de Lisboa e Porto, tribunais de família nestas mesmas comarcas e tribunais tutelares de menores com juizes privativos em Lisboa, Porto e Coimbra.

As secções dos tribunais das Relações têm actualmente competência tanto em matéria cível como criminal .

Mas a especialização volta a aparecer no topo da escala judiciária com duas secções cíveis e uma criminal no Supremo Tribunal de Justiça.

Verifica-se, pois, que os nossos tribunais ordinários de 1.ª instância, à excepção das comarcas de Lisboa e Porto, têm jurisdição comum, cumulativamente em matéria cível e criminal. Os seus juizes terão de estudar todos os ramos do direito. Há normas que terão de aplicar directamente aos casos que é da sua competência resolver e há outras que não dizem directamente respeito à questão de fundo, mas a sua observância tem de ser verificada no julgamento do caso submetido à apreciação judicial.

No fim da 1 ª instância os juizes poderão, deste modo, ter adquirido conhecimentos teóricos e experiência tais que lhes permitam obter uma perspectiva completa dos problemas jurídicos.

Postas estas considerações, parece-me que a proposta apresentada pelo Governo para poderem ser criadas nas Relações secções com competência di ferenciada, cíveis e criminais, é inteiramente de aplaudir.

A lei em que porventura venha a ser convertida a proposta agora em debate não imporá a obrigatoriedade da criação das secções com competência diferenciada. Apenas permitirá que elas sejam criadas,