interesse cientifico do método ao bem primordial do homem. E nisto deve merecer aplauso.

Atende ainda a proposta de lei que discutimos ao interesse da comunidade, na medida em que disciplina as potencialidades abertas pelo progresso técnico no âmbito da saúde sem descurar os direitos individuais de cada ser humano e a sua independência pessoal E também aqui deve merecer apoio.

Atende, por fim, a proposta de lei ao interesse do doente, à defesa do seu direito à saúde, sem comprometer a garantia constitucional do direito à vida e à integridade física que o estatuto básico na Nação consigna, deixando a cada cidadão a responsabilidade total e a plena independência de juízo quanto ao sacrifício em que, como dador, queira consentir de uma parcela do seu todo pessoal em acto que bem pode equiparar-se ao socorro de uma pessoa em perigo. Independência de juízo a pressupor sã consciência, apta a decidir dentro dos cânones morais, quando, até onde, em que termos e para que fins será legítimo abnegar-se em benefício de um outro, quando mesmo em próprio benefício se aceitam limitações de uso do próprio corpo condicionadas pela defesa da pessoa livre com todo o respeito a uma teleologia que a ultrapassa e a um devir que tem por imortal.

E aqui, como é evidente, se insere um ponto fulcral do tema, a desdobrar-se nas posições respectivas desses mesmos intervenientes.

E se não é discutível a posição do receptor, que apenas procura a sobrevivência ou o restabelecimento da saúde, desde que isso não colida com os direitos de outrem nem com a moral, com as limitações intrínsecas de uso do próprio corpo nem com as suas finalidades últimas, já deve merecer detida atenção quanto respeita ao dador e ao médico, melhor dizendo, à equipa de execução técnica da transplantação.

Quanto a esta, todavia, parece que havemos de assentar em que só dispõe de poderes e só lhe é lícito actuar dentro da limitação de direitos que o doente lhe confere e a que ele próprio não pode eximir-se. Neste caso o doente e o dador, aquele que já o é e aquele que o vai ser, quando menos ate à cura da intervenção sofrida Tudo se resume pois, para a equipa técnica, em actuar dentro dos cânones deontológicos da profissão, da legis artis, do primado do primum rton nocere.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Quanto àquele, o dador, o problema, pela sua singularização específica, pela sua novidade, pela sua tipicidade, entra no âmbito de uma solidariedade humana, de uma caridade fraterna, de uma teoria moral que ultrapassa o quadro corrente da simples disponibilidade.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Bem o entendeu a Câmara Corporativa, que em seu parecer encarou o facto da doação (de sacrifício em dádiva) em termos diferentes daqueles que medem o sacrifício em necessidade.

E, assim, no plano estritamente ético, já não pode perguntar-se se é legítimo sacrificar um tecido, um órgão ou parte de um órgão em favor de outro homem, dele carecido para sobreviver ou para alcançar saúde tão humanamente perfeita quanto pessoalmente lho consinta a sua individualidade psico-somática. Isto se guardadas, evidentemente, as restantes condições fundamentais de não comprometimento grave ou definitivo da personalidade dos intervenientes, pois o dador inteiramente benévolo dispõe apenas de parte do seu corpo em atitude de serviço, em caridade plena, em doação autêntica, consciente e livre, que, exaltando a sua liberdade interior, valorizando a sua independência, contribui para sublimar nele próprio o respeito e o apreço pela sua personalidade e pela liberdade interior que lhe é intrínseca. O que, desde logo, me parece limitar a condição de dador aos indivíduos inteiramente formados, adultos no físico e na mente, psiquicamente estáveis, sãos de corpo e de espírito e moralmente aptos a aprender e a valorar o sacrifício consentido, a sublimá-lo para benefício concomitante da personalidade de ambos os intervenientes, receptor e dador, como valor moral da própria sociedade em que ambos se integram e da civilização que a ambos se supõe ter formado.

E isto mesmo me leva precisamente a uma apreciação mais directa do conteúdo da proposta de lei em discussão, ainda que sem entrar em pormenores que só na especialidade teriam cabimento.

Por isso mesmo, atendo-me apenas ao que, ainda como pormenor, entronca no cerne do problema, parece de chamar a atenção para a limitação que na proposta de lei se contém quanto à definição de licitude das transplantações.

Limitando esta licitude, a par de outras legítimas exigências, ao reconhecimento de absoluta necessidade da transplantação para sobrevivência do receptor, a proposta de lei restringe consideravelmente o âmbito da regulamentação que procura fazer, limita drasticamente os casos em que uma transplantação pode ser humanamente útil, ignora ou despeza as potencialidades que a evolução da ciência e da técnica vão abrindo e não atende ao valor humano de algumas funções biológicas que, sem constituírem exigências vitais do indivíduo, são, todavia, indispensáveis ou altamente necessárias, para gozo de plena saúde, adequado viver humano e completo desenvolvimento da personalidade.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Mais ainda limitando a uma questão de sobrevivência a licitude das transplantações, a proposta de lei sobrevaloriza certas vidas infra-humanas e irrecuperáveis, como nos casos de descerebração, para minimizar potencialidades de recuperação pessoal e social que só uma transplantação pode conseguir. Estou a pensar na possibilidade de transplantação de tecidos ou de órgãos, estes, evidentemente, duplos, que dispensáveis para o dador, até por não serem nele, por hipótese, funcionais, poderiam restituir ao receptor funções indispensáveis a um pleno restabelecimento rígido, a uma recuperação humana, a uma reparação morfológica susceptível de refazer a sua própria personalidade psíquica e moral.

Vozes: - Muito bem!