O Sr. Presidente: - Srs. Deputados: Vamos passar à

Continuação da discussão na generalidade da proposta de lei sobre transplantações de tecidos ou órgãos de pessoas vivas.

Tem a palavra o Sr Deputado Ricardo Horta.

O Sr. Ricardo Horta: - Sr. Presidente: A proposta de lei submetida à apreciação e discussão na Assembleia Nacional, relativa à transplantação de tecidos ou órgãos de pessoas vivas, traz à consciência dos cidadãos responsabilidades que abrangem grupos dos mais diferenciados das sociedades modernas.

Compreende-se logo no início da análise feita à proposta de lei que está em jogo a coordenação dos princípios básicos que regem a solidariedade entre os homens e as técnicas das ciências mais falíveis e de vastas zonas desconhecidas.

Como se sabe, os actos médicos são controlados, permanentemente, pelos princípios jurídicos que os afectam.

Daqui podemos deduzir que o médico trabalha num campo de múltiplas responsabilidades, desde aquela que se insere no plano administrativo, no da medicina privada, no da medicina colectiva ou individual, com implicações no plano penal e civil, quando se pode pôr em causa a ausência da moral e dos bons costumes.

Felizmente que os actos profissionais da maior parte dos médicos vinculam-se, geralmente, a princípios científicos e morais.

Estou certo de que esta manifestação profissional é tão dominante que a maior parte dos técnicos não pensa na sua responsabilidade jurídica.

Já nesta Assembleia tenho aludido à necessidade dos poderes públicos responsáveis estarem vigilantes e estruturarem sistemas de admissão selectiva na entrada dos candidatos à carreira médica.

Oxalá que a não observância deste princípio não tenha incidências futuras na acção executiva dos profissionais deste sector.

A proposta em discussão, e de harmonia com o espírito científico que a anima, abre um campo médico dos mais sensíveis, para os princípios que acabo de enunciar.

Pode parecer, à primeira vista, que esta lei visa essencialmente o campo jurídico, com implicações de responsabilidade neste sector, tendo em vista o articulado brilhante e desenvolvido da Câmara Corporativa.

Ora, onde se podem encontrar as maiores dificuldades é na harmonização moral e científica dos actos que hão-de materializar o pensamento do Governo.

É, penso, baseados na dificuldade desta harmonia que, seguramente, os técnicos altamente conhecedores do problema levaram o Governo a propor, no seu artigo 2 º, alínea a), o enunciado «de que só é lícita a transplantação quando a mesma for necessária à sobrevivência do receptor».

Dentro de restrições implícitas deste articulado, eu perfilho a expressão governamental, e não a da Câmara Corporativa, que é redigida de forma mais vaga e susceptível de interpretações menos justas.

As restantes alíneas do artigo 2.º são defesas físicas e morais do dador e avaliações das medidas compensatórias entre os benefícios do receptor e do dador.

São de interesse médico e jurídico indiscutível, mas muito dependentes da doutrina da alínea a).

É evidente que a lei não podia deixar de ser expressa e de evocar o que é essencial em matéria de con sentimento do dador ou dos seus representantes.

De outra forma poderíamos cair em vícios de consentimento e até mesmo em verdadeiro imperialismo médico.

É evidente que as regras jurídicas a aplicar aos actos médicos não podem servir como elementos de um imobilismo absoluto, mas, pelo contrário, devem ser estruturadas no sentido qualificativo, mostrando que esta alta jurisdição tem perfeita consciência da necessidade de uma evolução, a qual não se poderá atingir sem riscos de experimentação.

Se quiséssemos abordar o campo da experimentação sobre o homem, muito teríamos de referir, pois viria à evocação acontecimentos ligados a cientistas dos mais brilhantes da história da Humanidade.

Quando um médico, em meados do século XX, faz um exame retrospectivo deste campo, não poderá deixar de se perturbar ante a audácia dos seus predecessores.

François Rousset, no século XVI, efectuou a primeira cesariana numa mulher viva e não anestesiada, Jenner, há 150 anos, i noculou o pus de cow-pox para vacinar contra a varíola; no fim do último século, Pasteur, que não era médico, injectou, pela primeira vez, um soro para salvar um jovem pastor atingido de raiva; em meados deste século -1962-, a equipa do Prof Hamburger dá os primeiros passos nos enxertos renais, que, por fim, o método de selecção do dador, posto em prática por Dausset, aperfeiçoou.

Apesar dos actos de génio destas grandes figuras da ciência, é lícito admitir os perigos de uma experimentação anárquica, que pode ainda ser agravada por pessoas insuficientemente informadas, mal preparadas e pouco conscientes do risco que podem fazer correr o doente.

Justificam-se, assim, os preceitos jurídicos nesta inovação terapêutica inseridos na proposta de lei em discussão.

Todavia, o espírito da lei ultrapassa a formalidade jurídica, como atrás já me referi, pois mostra querer integrar-se na evolução da ciência médica, acompanhando o seu progresso, tencionando criar infra-estruturas nesta matéria capazes de equipararem-se às suas congéneres internacionais actualizadas neste sector médico.

Este espírito está seguramente traduzido no conteúdo do artigo 8 º da proposta de lei do Governo, quando diz «que a transplantação de tecidos ou órgãos do corpo humano é da exclusiva competência de centros clínicos regulamentados e autorizados pelo Ministério da Saúde e Assistência».

Escusado é dizer que irão ser criados centros de diagnóstico e de investigação dos mais avançados do campo médico.

Posto isto, todos nós devemos estar esclarecidos de que a aprovação desta lei não encerra este delicado assunto, visto vir inserir-se numa estrutura sanitária global que, por várias vezes aqui tenho afirmado, não satisfaz no campo da execução. Quantos factores