São inegáveis os progressos que este ramo do conhecimento humano sofreu nas últimas décadas, graças ao concomitante desenvolvimento de outras ciências, que em muito contribuíram para o enorme avanço da medicina, sobretudo no aspecto técnico.

Chegou-se assim às transplantações de tecidos e órgãos entre pessoas vivas.

Ultrapassado em grande medida o período experimental, a sua concretização com indiscutível valor terapêutico e a circunstância de se encontrarem envolvidos neste processo valores físicos e morais inerentes à pessoa humana, por um lado de um dador, por outro de um receptor, que terão de salvaguardar--se, acarretam problemas éticos, jurídicos e deontológicos, que necessitam de conveniente disciplina através de normas legais.

Tal é o objectivo da presente proposta de lei n.º 1/XI.

Sobre matéria afim, existe já entre nós legislação sobre colheita de órgãos e tecidos de cadáveres (Decreto-Lei n.º 45 683, de 25 de Abril de 1964) e de produtos humano s para liofilização (Lei n º 1/70, de 20 de Fevereiro).

Com efeito, trata-se de uma modalidade terapêutica nova, que, para além do aspecto puramente médico, põe em causa o próprio homem, com o seu direito de personalidade sobre si mesmo, a intangibilidade do seu corpo e a ausência de um poder absoluto de disposições sobre si, impeditivo do ponto de vista legal da sua própria destruição ou deterioração física voluntária.

Todos estes aspectos foram minuciosa e escrupulosamente analisados pela Câmara Corporativa, conforme se infere do seu parecer n º 3/XI, onde se estabelece doutrina em comparação com as actuais e relativamente exíguas normas legislativas de outros países, nalguns dos quais as transplantações de órgãos e tecidos entre vivos constituem práticas correntes da cirurgia da especialidade. Dentro da complexidade dos problemas postos, os de maior relevo, pela sua transcendental natureza, são naturalmente os que dizem respeito à permissibilidade e licitude das transplantações, com evidente aceitação dos intervenientes directos, seus familiares e da sociedade em geral.

A nosso ver, o conceito moral estrangulante daquelas premissas evoluiu e foi superado pelo extraordinário avanço técnico das ciências médicas, com seus inegáveis benefícios para a humanidade, equivalentes a todos os outros actos médicos que salvam vidas ou minoram sofrimentos.

De resto, a intangibilidade do corpo humano, considerado nesta óptica, e os refreamentos de natureza moral suscitados pela dádiva de parcelas do corpo a outrem, está já inconsiderada no artigo 10 º da proposta de lei n.º 1/XI, parecer da Câmara Corporativa n º 3/XI e artigo 11 º da proposta das Comissões de Justiça e Trabalho e Previdência, Saúde e Assistência, ao referir que «As disposições do presente diploma não se aplicam às transfusões de sangue e às transplantações de pequenas superfícies da pele ou outras intervenções semelhantes que não comportem risco ou prejuízo real par a o dador.»

A transfusão é uma transplantação de tecido sanguíneo inter vivos, é uma cedência de uma parcela do corpo a outrem. Hoje é técnica corrente que tem salvo milhões de vidas, mas que levou muito tempo até se chegar quase à inocuidade, graças ao progresso científico em desvendar e corrigir os factores inibitórios da compatibilidade sanguínea. Muitos seres humanos morreram antes da descoberta dos grupos sanguíneos e dos factores da incompatibilidade. Hoje ainda não é sem alguns riscos que se procede às transfusões, a despeito da preparação e estudo convenientes em laboratórios adequados.

Os médicos e o pessoal auxiliar estão sempre atentos e prontos a agir no decurso de uma transfusão.

A analogia deste método terapêutico com as transplantações de órgãos e tecidos entre vivos foi a razão destas considerações, desvanecendo-se de algum modo as transcendentais preocupações de ordem moral, mormente no que se refere à licitude da citada terapêutica.

P or nossa parte damos parecer favorável, desde que se observe um certo número de preceitos que constituirão normas legais para a prática da transplantação de órgãos e tecidos de pessoas vivas e que constam da presente proposta de lei, parecer da Câmara Corporativa e relatório das Comissões de Justiça e do Trabalho e Previdência, Saúde e Assistência que está submetido a discussão nesta Assembleia.

Embora constitua matéria da especialidade, desejaria não deixar de referir, pela sua importância e finalidade essencial no contexto geral do diploma, o artigo 2 º, que disciplina a licitude das transplantações de tecidos ou órgãos de pessoas vivas.

Considerando lógica uma evolução no sentido do aperfeiçoamento técnico nas transplantações, aliado a um melhor conhecimento no domínio da imunologia sem o aleatório recurso da imunossupressão, parece dever optar-se pela redacção dada a este artigo pela Câmara Corporativa, cujo teor é o seguinte. A transplantação só é lícita quando no plano científico for reconhecido simultaneamente que:

a) A mesma se reveste de indiscutível e fundamental valor terapêutico para o receptor,

b) O dador não corre risco anormal de perecer, de lhe ser causada uma sensível diminuição física ou de ser afectada a sua personalidade moral;

c) As probabilidades e sucessos da operação sobrelevam indubitavelmente o risco corrido pelo dador

Com efeito, a alínea a) não se Limita apenas à sobrevivência do receptor, como na proposta do Governo, vai mais longe, inclui todas as situações que tendem a minorar o sofrimento do receptor.

A expressão «indiscutível e fundamental valor terapêutico» vai da sobrevivência, com um valor terapêutico máximo, ao minoramento do sofrimento, com um mínimo possível, que também é valor terapêutico.

De resto, é toda a feição da medicina Esta é a óptica maior por que deverá observar-se o magno problema das transplantações, que a curto ou médio prazo constituirão prática corrente entre nós desta modalidade cirúrgica especializada.

Compete à jurisprudência cabimentar o circunstancialismo decorrente desta nova e particular terapêutica