no ordenamento jurídico português, tendo sempre em vista os altos benefícios que advêm para a comunidade a que todos pertencemos.

Vozes: - Muito bem!

O Sr. Moreira Pires: -Sr. Presidente, Srs. Deputados A delicadeza da matéria contida ou ligada à proposta de lei n º 1/XI, que ocupa esta Câmara, merece o mais cuidadoso e pormenorizado tratamento, sem que com isso consigamos conscientemente eliminar algumas dúvidas, esclarecendo todas as possíveis incidências.

Daqui decorre me parecer oportuno fazer algumas considerações sobre princípios fundamentais, tentando projectar a matéria em discussão em todos os horizontes humanos, considerando o homem em todas as suas complexas perspectivas.

Não tendo formação jurídica, difícil se me torna integrar-me numa linha dessa especificidade e assim poder analisar como desejaria, por necessidade ou até curiosidade intelectual, as implicações da matéria que nos ocupa.

Por outro lado, como médico sinto uma certa sensibilização e entusiasmo pelo múltiplos problemas que o presente projecto de lei implica, sem todavia não deixar de reconhecer quão difícil se torna abstrair de alguma deformação profissional apaixonada nos seus objectivos ou excessivamente tecnicista.

Uma posição meramente especulativa é tantas vezes facilmente criticável e todavia quantas vezes uma ciência meramente especulativa não constitui «o embrião raciocinado» de uma ciência a breve trecho positiva e bem concreta na sua realização objectiva, desde que obtidas certas condições que a ciência venha a proporcionar.

Do equilíbrio destes factores, jurídico e médico, se poderá obter uma posição normativa concreta e eficiente, salvaguardando os valores que nos transcendem e os fins últimos do homem em sadia perspectiva e dignificante realização.

Procurei estudar e tentar interpretar, com as limitações decorrentes da falta de preparação jurídica já enunciada, o douto parecer n.º 14/VIII da Câmara Corporativa referente ao projecto de lei n º 516/VII sobre colheitas de órgãos e tecidos nos cadáveres.

Considero simplesmente notável o referido parecer, pela meticulosidade, coragem moral em assumir posições definidas em pontos doutrinários de indiscutível melindre e ainda pela profundidade a que a análise dos problemas foi levada Trabalho científico verdadeiramente excepcional, que notabiliza quem o subscreve e todos os que nele intervieram.

Isto passa-se em relação aos cadáveres e aos direitos dos mesmos.

Paradoxal e até, de certo modo, incompreensivelmente se abreviou um sintético e aligeirado parecer da Câmara Corporativa no que concerne à matéria que prende a nossa atenção neste momento, tanto mais tratando-se de direitos de pessoas vivas, sem dúvida com implicações mais poderosas e a exigir maus aprofundado tratamento.

Não nos competindo emito parecer em sobreposição à Câmara Corporativa, antes discutir o projecto de lei, procuremos apenas uma modesta análise dentro do âmbito deste debate.

I) O homem, constituído por matéria e espírito, é indubitavelmente pela sua actividade intelectual que procura situar-se no universo, tentando interpretar o mundo à sua volta, interrogando-se permanentemente sobre a sua origem e perspectivando a sua finalidade última.

Esta a mais significativa constante do homem através da história, esperança para uns, desespero para outros.

É na perspectiva cristã que o homem melhor se realiza, mais livre e com maior dignidade se processa a caminhada terrena.

Esta a posição assumida no parecer da Câmara Corporativa em 1963 e com a qual me sinto identificado.

Para além de um convencimento pessoal que não pretende impor-se aos outros, antes respeita as posições adversas, legitima, todavia, uma dedução coerente de raciocínio que não conduz à massificação e despersonalização do homem das teorias materialistas.

Na mesma tinha de pensamento, o corpo humano será pertença, em pleno direito de posse por parte do espírito, da alma que o habita, ou de certo modo o «contém» na objectivação da sua natureza humana? Ou apenas usufrutuário para as tarefas de perspectiva humana?

A vida é um dom que Deus nos oferta, todavia não temos o direito de dispor dela.

Poderemos dispor do nosso corpo ou de parte do mesmo?

Em relação ao cadáver, a discussão sobre se pode ser considerado coisa ou não coisa cria dificuldades e origina interpretações jurídicas diversas, o saber se um órgão ou tecido no ser vivo deve ser catalogado de coisa ou não coisa também provoca acesa discussão.

A personalidade resultante da inserção do espirito no próprio corpo humano, com as suas reacções de comportamento do facto dependentes, não se transmite da dação de uma parte do corpo. Todavia, essa personalidade poderá alterar-se com a amputação de uma parte do corpo? E em que medida?

Ao dar unia coisa puramente material não transmitimos sequer, em parle, a nossa personalidade, mas se ela é objecto da nossa actividade criadora ou transformadora podemos, sem dúvida, afirmar que. nela se transmite um sinal concreto da nossa personalidade. Transmite-se nela, portanto, não parte da nossa personalidade, antes uma manifestação visível concreta e palpável da mesma, seja pois uma mensagem concretizada numa obra de arte através da qual o artista contacta com o exterior a síntese de uma apreensão cognoscível centriptamente obtida.

Como diz o parecer da Câmara Corporativa de 1963, a razão pela qual a maioria dos autores, se bem que apegados à concepção do cadáver como coisa, versa os problemas respectivos, não a propósito de coisas, mas dos direitos relacionados com a personalidade.

Nessa conformidade, a conclusão a tirar segundo o referido parecer será esta «Seja qual for a natureza atribuída ao cadáver, visto isoladamente o regime jurídico dele, só é compreensível quando integrado no conjunto de problemas morais e jurídicos suscitados pela personalidade humana e por toda a sua projecção na ordem jurídica ».