e projectá-la em acção. E se isto é válido para todas as entidades, há-de sê-lo particularmente para o legislador, intérprete e garante da efectivação das ansiedades da grei, nas suas raízes, na cadeia histórica das suas vivências e no seu próprio destino.
Toda a construção do direito aponta decisivamente para o primado incontestável da pessoa humana. Não para o homem compartimentado ou dimensionado sectorialmente pela «inteligentzia» e pela «tecnocracia». Mas para o homem integral, o homem vivo e concreto, que connosco sofre e sonha e ama e tem um destino a cumprir, incrustado na vida que recebeu e que lhe cumpre viver.
«O direito é assim», escreve o Prof. Gomes da Silva, «essencial e privativo do homem como pessoa - como ente singular e autónomo, racional e livre, e destinado a um fim transcendente fixo e necessário.»
Todo o direito aponta para a pessoa humana e para o seu serviço.
Mas se desta feita as coisas se passam, dentro de uma concepção personalista e seja qual for o escopo da lei, mais acutilante e expressivo o fenómeno se torna quando está em jogo o direito à vida e à integridade pessoal do homem.
Deve anotar-se, desde já, que a Constituição Política da Nação, ao inventariar os direitos, liberdades e garantias individuais dos cidadãos portugueses, hierarquiza logo em primeiro lugar, no seu artigo 8.º, «O direito à vida e integridade pessoal».
Mas toda a norma jurídica tem um sentido Ideológico. Existe para um fim.
Se o simples facto de viver confere ao homem o direito à vida, esta mesma circunstância consequencia-lhe, desde logo, a obrigação de viver.
Por isso se tem entendido comummente - e com aceitação geral de todas as legislações - que ninguém pode pôr termo à vida ou amputar qualquer membro ou concitar ou permitir que outrem o faça.
O homem é mero usufrutuário do seu próprio corpo, que não é «coisa», nem pode ser «coisificado». Exerce sobre ele um direito de âmbito especial e intrínseco , sempre limitado pelos outros fins intrínsecos da pessoa. Ao contrário do que acontece com as «coisas», não pode auferir do seu corpo as «utilidades» efectivas ou potenciais que só podem existir para servir alguém.
Na sociedade de homens livres, que o cristianismo nos legou e em que pretendemos viver, o homem não pode dispor nem da vida, nem do corpo. De outra forma cairia automaticamente na escravatura.
Daqui, a consagração geral, cujo princípio aflora em todas as legislações, dos chamados direitos de personalidade indisponíveis.
No curso da melhor doutrina, o ordenamento jurídico português regista, pois, como indisponíveis, o direito à vida e à integridade pessoal do homem.
Mas o homem é um ser eminentemente social. Preocupa-o a «justiça», que, no dizer de S. Tomás de Aquino, é uma virtude orientada para outrem (virtus ad alterum).
Ao arrepio desta tendência natural, o homem isolado, quando existe, ou é um monstro inumano ou um supliciado.
Lembro de memória o episódio que se conta de um conhecido e combativo político que sentidamente se dirigiu um dia aos seus adversários, dizendo- «Eu vos saúdo e vos abraço. Sem vós, as minhas palavras e os meus escritos jamais existiriam. Fostes vós que destes sentido ao meu combate e uma razão de ser à minha vida.»
O homem só vive com o outro homem. No amor e no ódio, no espírito e na carne. É ele que lhe desperta os mais altos sentimentos e as mais degradantes paixões. E junto têm de comum o encargo - por vezes bem pesado - de viverem a vida.
Como diz Vergil Gheorghiu, o homem que viajou sozinho, «no fundo, nunca esteve sozinho. Nenhum homem está sozinho na terra, visto que todo o homem vai no seu caminho ao lado de Deus, que lhe guia os passos».
Ora, a força desta solidariedade atira o homem para os braços do seu semelhante. Sujeita-o na emoção mais empolgante que a vida tem o sacrifício e a abnegação de si próprio em proveito de outrem.
De resto, o fenómeno não é de fundamental valor terapêutico a justifique? Esta, a delicada questão.
Por nós, optamos decididamente pela ponderada decisão sugerida pelo Governo. Parece-nos, na verdade, que só em casos extremos de perigo de vida do receptor poderá e deverá permitir-se ao dador a cedência de quaisquer órgão ou tecido para transplantação àquele.
Com efeito, como já foi referido ao falar-se da natureza e destino do direito - mormente do direito indisponível -, a cirurgia das transplantações só pode justificar-se, ética e juridicamente, como uma nova modalidade de conjuntura social destinada a servir o homem. Não o homem irreal e abstracto, estranho à grande solidariedade da vida. Mas o ser humano vivo e concreto, que em cada afirmação e vivência do direito, tem de sentir sempre a garantia da sua dignidade e a «sacralização» do seu destino superior.
Vozes: - Muito bem!
O Orador; - A nova técnica das transplantações não se pode afirmar, num plano de direito, como uma simples luta contra a doença por uma simples luta contra a doença por qualquer preço. Assim como não pode haver paz por qualquer preço, também não deve haver terapêutica por qualquer preço. Nem num caso nem noutro os fins justificam os meios. Em todo o caso de luta contra a doença tem de existir