sempre bem patente, de envolta com o escopo de recuperação de um enfermo, a preocupação de se não atingir a personalidade psicossomática dos demais.

Só desta feita se poderá falar verdadeiramente em «moral de serviço» a favor do homem.

Por outro lado, o fenómeno da transplantação de tecidos ou órgãos de pessoas vivas implica sempre, por parte do dador, uma situação de melindre para a sua sanidade físico-psíquica e para a integridade da sua própria personalidade humana.

Com efeito e sem embargo da inquietante contingência dos diagnósticos e dos exames clínicos, a ablação de um órgão a qualquer homem há-de marcá-lo inevitavelmente com a sensação de um real empobrecimento físico e de uma preocupante nostalgia moral.

É não só a concepção personalista do homem que está em causa, mas ainda o facto de uma mutilação, que, embora voluntária, sempre ficará a assinalar a sua sensibilidade.

Ora, numa situação destas só pode aceitar-se com espírito de doação desinteressada e humanitária, por parte do dador e ao mesmo tempo em situações extremas de doentia necessidade por parte do receptor.

Mais concretamente: só a ausência de qualquer outra possibilidade de remédio e um estado de saúde in extremis podem justificar, ética e juridicamente, a ofensa de uma ablação ao sentido de integridade e de conservação do homem.

Ora, esta situação só se compreende em casos de perigo de sobrevivência de receptor. Com efeito, se não houver este perigo, sempre as necessidades de uma boa terapêutica se poderão resolver com a oportuna colheita de órgãos ou tecidos em cadáveres ou com produtos biológicos humanos liofilizados.

Além disso, o sacrifício de amputação de um homem para fins meramente terapêuticos de outro, viria a traduzir-se numa aplicação utilitária daquele em proveito deste, ou seja, numa «coisificação do dador».

Ora, como escreve o Prof. Gomes da Silva, ainda.

Que certo homem pareça inútil; ainda que nele se não vejam mais do que encargos para os outros ou se pense que ele, como simples instrumento ou escravo, poderia proporcionar à colectividade vantagens superiores à da sua actuação livre, mesmo que ele se mostre danoso para a sociedade ou se revele desprovido de toda a razão e liberdade e necessite de ser regido pelos outros homens - mesmo que assim aconteça, nem por isso o direito poderá nortear-se por directrizes exclusivamente utilitárias, e antes terá de respeitar e tratar esse homem como tal.[...] A justificação e o sentido fundamental de todo o direito residem no fim para que ele existe e que outro não é senão o fim último e supremo dos homens.

De resto, é neste sentido que tem de se entender também a referencia apontada pela Câmara Corporativa ao teólogo Bouchaut, que defende a legitimidade da doação em casos em que o órgão do dador é necessário à sobrevivência do receptor. Escreveu ele:

Pôr em dúvida a legitimidade da doação de um órgão necessário à sobrevivência de um outro ser humano pode parecer paradoxal.

Por outro lado, parece-me poder dizer-se que, em casos de transplantação destinada a garantir a sobrevivência do receptor, nem chega a haver sacrifício do princípio da indisponibilidade de direito à integridade pessoal do dador.

Na verdade, «a integridade pessoal» está subordinada e faz parte integrante do direito à vida.

Ora, se é uma vida que se salva, o membro cedido e transplantado não tem um fim utilitário para o receptor, mas vital. É o princípio do direito à vida que se afirma na comunhão ideal da solidariedade humana. É a concepção personalista do direito que se exalta.

Acresce ainda que a inovação da Câmara Corporativa, além dos erros e dos inconvenientes apontados, haveria de permitir sempre um alargamento perigoso do campo de intervenção da cirurgia das transplantações, consagrando um critério demasiado subjectivo e prenhe de incertezas de actuação prática.

Acode-nos, designadamente, ao espírito a hipótese de muitos parentes de enfermos, atados à mesa das intervenções como dadores, em estado de verdadeira e angustiante coacção moral, só porque um inquietante ambiente familiar levou um centro clínico a registar o caso como de indiscutível e fundamental valor terapêutico.

Que sombrios e decepcionantes momentos nos poderiam esperar!

Nos rescaldos do pós-guerra correu mundo um livro famoso, onde se falou nos «escravos técnicos» e na sua fria linguagem mecânica e avassaladora.

Recordo agora uma passagem desse documento a visionar o procedimento futuro dos homens nas suas relações com os escravos técnicos.

Os seres humanos são obrigados a viver e comportar-se segundo leis técnicas, estranhas às leis humanas. Os que não respeitam as leis da máquina, promovidas à craveira de leis sociais, são castigados. O ser humano que vive em minoria torna-se, com a ajuda do tempo, uma minoria proletária. É excluído da sociedade a que pertence, mas não pode, de ora avante, integrar-se sem renunciar à sua condição humana. Vem-lhe daí um sentimento de inferioridade, o desejo de incitar a máquina e de abandonar os caracteres especificamente humanos que o mantêm afastado dos centros de actividade social.

E esta lenta desintegração transforma o ser humano, fazendo-o renunciar aos seus sentimentos, às suas relações sociais até as reduzir a qualquer coisa de categórico, preciso e automático, as mesmas relações que ligam uma peça de máquina a outra. O ritmo e a linguagem do escravo técnico são imitados nas relações sociais, na administração, na pintura, na literatura, na dança. Os seres humanos tornam-se papagaios dos escravos técnicos.

Alonguei-me na transcrição, por me parecer elucidativa. Neste tempo - a que já alguém chamou «tempo de escravos»-, a linguagem da técnica, da admirável técnica, que foi criada e aperfeiçoada para servir o homem, começa a limar e a corroer alguns valores fundamentais da cultura e do direito.

Assim acontecerá no caso vertente, se deixarmos «coisificar» a pessoa humana, possibilitando-lhe que possa vir a ser mero elemento utilitário de outrem