Então o nosso voto e a nossa decisão teriam a plangência mórbida de um dobre a finados por uma faceta da liberdade humana, preservada até hoje na sua concepção personalista e na consequência dos seus direitos indisponíveis.

O Sr Santos Pecegueiro: - Muito bem!

O Orador: - Isto sem embargo de venerarmos e impulsionarmos a ciência e, designadamente, as apuradíssimas técnicas de terapêutica médica, com esperança, com entusiasmo e com decisão.

O Sr. Moreira Pires: - Muito bem!

O Orador: - Mas acompanhemos este nosso grito de fé no futuro da ciência, com o correlativo enquadramento nos valores jurídicos que livremente nos enformam e firmemente defendem a nossa liberdade.

De outra forma, ao saudarmos a ciência, imitaremos o papel dramaticamente histórico dos gladiadores da velha Roma, quando gritavam: «Ave, César! Os que vão morrer te saúdam.»

Dentro desta conjuntura, dou a minha aprovação na generalidade à proposta de lei em debate.

Vozes: - Muito bem!

O Sr. Albergaria Martins: - Sr. Presidente: «Se não pode ser negado o egoísmo do homem, com raiz profunda no sentido da conservação, também faz parte da sua natureza a apetência para o bem»; lê-se no preâmbulo da proposta de lei n.º 1/XI «Transplantações de tecidos ou órgãos de pessoas vivas», que o Governo enviou a esta Assembleia e cujo debate agora se processa.

E não fora o altruísmo, a «apetência para o bem», a satisfação de ser útil, a noção de solidariedade que o viver em sociedade nos inculca e impõe, e leis como esta, que agora discutimos, não seriam possíveis, imagináveis sequer.

Mas graças a Deus que o homem moderno não pendeu de todo as suas virtualidades. Bem ao contrário, ainda que o turbilhão da vida tudo pareça sorver e confundir, certas virtudes se sublimam e não raro nos é dado observar «lírios entre abrolhos», como diria o poeta.

É, com efeito, onde o egoísmo campeia que mais facilmente, por vezes, se encontra a abnegação.

Não é difícil, por isso, encontrar quem generosamente se disponha a oferecer, sem outra compensação que não seja a satisfação íntima de praticar o bem, órgão ou tecido a quem deles possa necessitar.

Grande, nobre, generoso é o homem que, consciente dos perigos que poderá correr, não hesita em se despojar de um pouco de si mesmo para tornar possível que recupere a saúde e volte à vida um seu semelhante.

Por isso mesmo tanta virtude, e virtude tão sublimada, obriga-nos a ter para quem a pratica um carinho e um cuidado muito especiais.

Espero não escandalizar ninguém ao declarar aqui que na matéria em discussão quase só me interessa, quase só dou valor, quase só me preocupa a posição do dador.

O receptor, o que necessita que outrem lhe dê um órgão, é para mim, pelo menos, como medico, um ser doente necessitado dos mesmos cuidados e dando as mesmas preocupações que qualquer outro doente grave, ainda que não necessitado de qualquer transplantação.

Para ambos é necessário encontrar remédio e é urgente tomar atitudes terapêuticas salvadoras.

Para ambos, em perigo de morte, as atitudes terão de ser rápidas e correctas. Mas enquanto que para um as preocupações convergem todas para ele e só para ele, para o outro as preocupações dividem-se entre ele e o dador.

E a mim dá-me mais cuidado o dador que, em perfeito bem-estar, vai consentir numa doença, transitória, é certo, a decorrente da intervenção de recolha do órgão, e de qualquer modo e sempre na ablação de parte do seu corpo que poderá eventualmente, mais tarde, vir a fazer-lhe falta perante agressões futuras sempre possíveis.

Por isso nunca serão de mais as cautelas, nunca demasiados os cuidados tendentes a defender o dador.

Este tem de ser protegido mesmo contra a sua vontade.

Não será dador quem declara querer sê-lo, mas antes quem possa sê-lo.

E o definir quem possa ser dador ultrapassa a capacidade da medicina.

Tem esta de intervir na escolha com base nos dados científicos de que dispõe e atinentes ao êxito da intervenção.

Mas também a ética, a deontologia, a moral, em suma, têm uma palavra a dizer na feitura das normas que hão-de regular a prática das transplantações entre vivos.

Por isso, Sr. Presidente, eu dou o meu voto à proposta de lei em apreço por, na generalidade, me parecer acautelar o que de essencial havia que prevenir.

Com efeito, a doação rigorosamente gratuita, a necessidade do consentimento inequívoco, sobretudo da parte do dador, a finalidade exclusivamente terapêutica, a fixação para o dador de uma idade mínima, etc, são parâmetros aceitáveis e que, repito, são suficientes para que dê a minha aprovação na generalidade à proposta de lei, discordando, embora, em questões de pormenor e concreta e fundamentalmente quanto à alínea a) do artigo 2.º e ainda quanto ao artigo 3.º

O Sr. Leite de Faria: - Muito bem!

O Orador: - É que também a mim me parece ficar o âmbito da lei demasiadamente restringido se se viesse a aceitar que as transplantações entre vivos só seriam lícitas quando delas dependesse a sobrevivência do receptor.

O Sr. Leite de Faria: - Muito bem!

O Orador: - Ficaria assim excluída, o que não me parece bem, a possibilidade de transplantar tecidos com o fim de curar doença, defeito ou aleijão, que não tivesse como consequência a morte certa de quem os padecesse.

Para mim, o valor da medicina está mais no remediar, no curar, no diminuir sofrimentos, que, propriamente, no salvar de vidas.