A primeira preocupação é a de considerar, como se afirma no relatório conjunto das Comissões, oportuna e indiscutivelmente necessária esta proposta de lei

Fico com a ideia de que o Governo quis ir na peugada de alguns outros - muito poucos! -, harmonizando também a nossa legislação com os extraordinários progressos da medicina - desta medicina do nosso tempo, que, no dizer do Prof. Hamburger, abre os corações e os cérebros, tira o pulmão, substitui o rim, já dispõe de drogas que alteram a personalidade humana, brinca diariamente com os venenos, ressuscita mortos, controla a fecundidade da mulher, etc , e que quis também dar aos médicos portugueses possibilidades e garantias que não possuem e aos doentes o direito da utilização das mais modernas técnicas da terapêutica, com possibilidade de protelar a morte por meses ou anos

Dentro de um sistema de prioridades legislativas e de realizações práticas, não me parece que esta tenha suficiente justificação Mesmo no sector limitado do Ministério da Saúde há problemas que aguardam, há muito, solução conveniente e de cuja resolução beneficiaria o País inteiro Até mesmo neste sector limitado das transplantações, que foi regulado pelo Decreto-Lei n º 45 683, publicado há dez anos, no da transplantação renal e da diálise, que com ele se ligam intimamente, há programas urgentes que há muito aguardam solução

Para se poder concretizar, no domínio da prática, a lei em que se venha a transformar esta proposta, há-de acarretar da parte do Ministério da Saúde investimentos vultosos, em instalações, equipamento e preparação de pessoal técnico, superior e auxiliar, devidamente especializado, que, naturalmente, virão comprometer o apetrechamento de outros serviços, fundamentais e urgentes, onde a penúria é manifesta e onde a primazia claramente se impõe.

Vamos colocar-nos, por via dessa lei, na vanguarda, à frente de muitos países da Europa, à frente da própria França, mas não prevejo que pos samos vir a dispor, a breve trecho, das condições materiais e humanas indispensáveis para dar-lhe execução condigna O problema essencial das transplantações não é de lei nova nem de técnica cirúrgica. Esta está ao alcance de muitos cirurgiões. Os problemas fundamentais são os da selecção dos dadores e de receptores, os da investigação imunológica, os da atenuação ou anulação das reacções de rejeição dos órgãos enxertados, os da instalação e equipamento dos respectivos centros de investigação e da preparação do pessoal que neles há-de trabalhar, os da instalação dos centros cirúrgicos onde se hão-de lazer as transplantações, dos quartos assépticos e do apoio laboratorial especializado que lhes estão anexos, etc. E, para o da transplantação renal -sem dúvida o mais urgente e o mais fácil-, ainda o desenvolvimento dos centros da diálise de que ele é complemento, o da criação de serviços de nefrologia que com ele hão-de conectar-se, o da criação da especial idade de nefrologia e criação do respectivo internato, etc

Nestes sectores, a Câmara sabe como estamos e do que precisamos e, por isso, dispensar-me-á de pormenorização e das respectivas conjecturas

Quero, no entanto, informar que, consciente do valor da diálise, das nossas necessidades neste sector, da indiscutível precedência que ela tem sobre as transplantações renais que dela são complemento, a Comissão Instaladora do Centro Hospitalar de Coimbra não descansou enquanto não instalou, no seu hospital geral, quatro postos de diálise e que estão em vias de instalar, em conexão com eles, o serviço de nefrologia.

A este propósito, seja-me lícito deixar aqui um apelo - o de que o Governo atenda devidamente o programa já elaborado para seis anos no que toca à diálise no nosso país, equipando devidamente os centros que ainda o não estão e criando os que faltam, bem como o que respeita à preparação de pessoal e aos serviços da nefrologia, uma vez que isso é indispensável ao tratamento dos múltiplos portadores de insuficiência renal crónica e aos centros de transplantação renal

Acresce, ainda, que, a despeito de não haver legislação, nem por isso se deixaram de fazer transplantações de tecidos e órgãos vivos no nosso país, porque, tal como se afirma no douto parecer da Câmara Corporativa.

Sempre os médicos, os juristas e os tribunais têm, encontrado nos princípios gerais do direito positivo, em construções doutrinárias -com especial relevância e ênfase no consentimento do agredido como justificação de facto- nas normas éticas e na moral deontológica, o suporte necessário para a permissão e legitimidade das citadas intervenções cirúrgicas, com plena aceitação, como é evidente, dos próprios interessados, dos seus (familiares e da sociedade em geral

Também não oculto à Câmara outras preocupações embora saiba, como já disse, que, nalguns países, já se legislou sobre a cedência de órgãos vivos para transplan tações, nem por isso deixo de informar a Câmara do que se afirmou no Congresso de Lião sobre transplantação renal e diálise, em 1969, pela boca do Dr. Poissou, um dos responsáveis por muitas transplantações renais, que a colheita de rins de cadáver era, sem dúvida, a solução do futuro das transplantações renais E afirmou também que, actualmente (1969), em França se aproveitam, porém, os rins de indivíduos em estado de coma ultrapassado -estádio IV- mantidos em circulação artificial, em aparelhos especiais. São os que estão em estado de morte cerebral -por hemorragia craniana, por traumatismo craniano, por intoxicação medicamentosa -, estado este considerado irreversível. Afirma-se a preferência para os rins de cadáver, a despeito de se verificar que as taxas de sobrevivência a longo prazo com os rins vivos são ligeiramente superiores às outras (78 % no fim de dois anos e 65 % ao fim de cinco anos, no primeiro caso; 62% e 44%, respectivamente, no segundo).

Quero também da r conta do receio que tenho de que o diploma que há-de trazer a precisão legal tendente a acautelar os direitos dos dadores e dos receptores e a definir as responsabilidades dos cirurgiões que executam as transplantações traga também consigo o despertar de uma série de graves problemas morais e psíquicos que até hoje se não verificaram entre nós.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Poucos serão os sectores da actuação médica onde se possam levantar problemas de ordem