E Charles Malik, como se assinasse a sua declaração de voto, diagnosticou dramaticamente a situação da crise. «Um ser humano que não deseja encontrar-se .. não há espectáculo mais trágico».
Obrigado, Sr. Presidente O texto que nos propõe o Governo para o artigo 2.º em discussão limita a licitude do acto de mutilação de órgãos ou tecidos àqueles casos em que o sacrifício do dador é necessário para a sobrevivência do receptor.
O texto proposto pela Câmara Corporativa, recolhido, no que é essencial, pela proposta das Comissões, admite a transplantação sempre que se revista de «indiscutível e fundamental valor terapêutico».
O Governo só aceita o sacrifício do dador nos casos de última extremidade, para salvar uma vida irremediavelmente comprometida, como em autêntica e legítima defesa alheia.
A Câmara Corporativa aceita a mutilação como processo de tratamento idóneo; não é preciso que esteja em causa o valor singular de uma vida, bastará o sofrimento, a dor, a carência, para justificar o sacrifício alheio.
Ora, em primeiro lugar, a medicina não é uma ciência exacta, e, por isso, falar de um valor terapêutico indiscutível é profundamente insensato.
Todos os prognósticos têm uma margem de erro e a contingência da transplantação não pode ser contestada.
É certo que tanto se pode errar no prognóstico da sobrevivência e da situação ulterior do dador e do receptor, como no valor terapêutico indiscutível e fundamental da transplantação.
Simplesmente, o risco que se corre no caso da sobrevivência é aceitável em função do valor que se procura defender, ao passo que a saúde do enfermo, a cura do doente, são objectivos finais da medicina que não justificam o uso de todos os meios, nomeadamente a mutilação e sacrifício de outras pessoas.
Os fins não justificam os meios do tratamento.
Os meios hão-de ser, só por si, legítimos.
É este um valor ético da nossa civilização que também parece necessário defender.
É, portanto, pelos seus malefícios intrínsecos que a inovação da Câmara Corporativa, perfilhada pelas Comissões, deve ser combatida.
A receita vem embalada em riquíssima roupagem, animada pelo progresso científico e das relações humanas, capaz de mostrar que a solidariedade entre os homens será a arma decisiva para acabar de vez com o sofrimento.
Os dadores, bem mentalizados, vencerão o profundo instinto natural de conservação, transferindo quase sem dor os órgãos ou os tecidos, na mais sadia solidariedade ou no mais esclarecido espírito de caridade, ao jeito de quem ama o próximo.
Tudo está em admitir precipitadamente que o homem se pode desprender de um bem que não é disponível.
A livre disposição do corpo deixaria a porta aberta para a destruição da singularidade, da dignidade, do respeito pela natureza eminente da pessoa, pela sua vida e integridade física, valores que em séculos de civilização foram trabalhosamente alcançados e defendidos.
Só a sobrevivência, e a sobrevivência em termos que o dador e o receptor hão-de livremente avaliar, pode justificar que se atinjam os bens que estão em causa.
O consentimento do dador há-de avaliar, com toda a carga de valores que nele se comprometem, a legitimidade do sacrifício da sua integridade física para a defesa de uma vida alheia, e o consentimento do receptor terá necessariamente em conta o valor da sua vida e a legitimidade do sacrifício de um bem alheio, ímpar, irrecuperável e insubstituível.
Só em última extremidade, quando seja necessário para a sobrevivência de alguém, sobrevivência para viver, e não para vegetar, se poderá propor a outrem o sacrifício da sua integridade física e a aceitação estóica do mesmo sacrifício.
A dificuldade do prognóstico e a margem de erro da medicina na avaliação das situações são largamente conhecidas e estão bem documentadas no debate da proposta na generalidade pelos distintos médicos que nela intervierem.
As situações difíceis e dramáticas haviam de suceder-se em cadeia quando pela aprovação do texto proposto pela Comissão e iniciado o funcionamento dos centros previstos a ameaça à integridade física das pessoas se tornasse efectiva e se generalizasse a prática da transplantação de órgãos e tecidos em todos os casos de «indiscutível e fundamental valor terapêutico».
O indiscutível valor terapêutico parece-nos presunção excessiva e na medida aceitável está também implícito na proposta do Governo, na expressão «necessária à sobrevivência», mas a qualificação de «valor terapêutico fundamental» é muito mais aberta e imprecisa do que a imposição directa do prognóstico da sobrevivência.
Como «fundamental» só pode querer dizer único e insubstituível meio de cura, a ameaça que pesara sobre as pessoas tornar-se-á verdadeiramente catastrófica à medida que a técnica favoreça.
Havemos de chegar às equipas de colheita de órgãos, ao banco dos órgãos das p essoas vivas, a todo o aparato técnico que nem sei descrever, e a acção das chamadas relações públicas, apoiadas na informação e na estatística, multiplicar-se-á junto dos doentes curáveis e incuráveis, dos diminuídos e dos sãos, para generalizar os processos da cura de uns à custa da mutilação dos outros.
Ao seguro que já vem proposto, embora o prémio não esteja fixado, sucederá a justa indemnização, e à indemnização o contrato de compra e venda de órgãos e tecidos.
O plano inclinado em que a proposta coloca o problema dará os seus frutos.
O corpo ficará aberto a negociação e hão-de surgir as pregações de moral contra o egoísmo de quem tem saúde e não quer ceder nem vender a integridade do corpo, em oposição ao direito por parte dos doentes ao tratamento fundamental das suas mazelas à custa do sacrifício alheio.
Esses não se chamam egoístas, mas apenas beneficiários.
O sofrimento tornar-se-á um valor a permutar e deixará de ser um alto exemp lo de redenção, como se estivesse na mão do homem distribuir o bem que é a saúde e dividir, equitativamente, o sofrimento e o mal e a morte, tributo universal e imprescritível da nossa natureza decaída.
O humanismo marxista, como já vimos, entrega ao Estado a protecção dos indivíduos, massificando as soluções. Retira, porém, liminarmente à pessoa o