seu carácter singular, autónomo, a sua liberdade de viver e morrer segundo os desígnios da Providência, dispondo dela conforme a conveniência da sociedade socialista.

Haverá ou não haverá transplantações, conforme os esquemas científicos e os planos aprovados pelo partido.

Haverá mais ou menos cegos e loucos, consoante a definição dos comportamentos, as estatísticas e os progressos da ciência e da mentalização socialista.

Bastará demonstrar que os órgãos e os tecidos colectivizados servem radicalmente a construção do verdadeiro socialismo para serem colectivizados os órgãos e os tecidos de cada um.

O humanismo chinês, com a sua medicina própria, assimilando da cultura ocidental aquilo que realmente convier à sua própria cultura, continuará, impassivelmente, a sua trajectória.

É um outro mundo que não nos é dado ainda penetrar e onde imperam outra lei e outros costumes de que apenas conhecemos o que nos querem dizer.

O humanismo tradicional do Ocidente , cuja crise se avalia pela própria discussão em que nos empenhamos, precisa de ser defendido intransigentemente.

Vale a pena lutar pela defesa dos seus valores essenciais, porque, na sua raiz está realmente o homem com a dimensão própria, criado à imagem e semelhança de Deus.

Bastará que ele queira encontrar-se, como dizia Malik, para que a tragédia se não consume e os direitos de personalidade se não degradem em direitos sociais.

Quando está em causa a defesa do direito fundamental à vida e à integridade física, e com ele o da natureza eminente do homem, a transplantação de um cabelo ou de uma unha, pode dizer-se, embora em termos ininteligíveis para muitos, que começou a coisificação do homem e, consequentemente, a sua escravatura.

Não há liberdade de consentimento contra as leis naturais, não há legítimo consentimento quando se sacrificam direitos inalienáveis e indisponíveis.

Os fins não justificam os meios, repetimos.

Só o direito natural de legítima defesa alheia justifica o risco da vida e a mutilação de órgãos ou tecidos.

Causa-me a maior apreensão a aplicação desta lei quando o ensino médico parece esquecido das regras da deontologia profissional.

Que humanismo vai servir a medicina? Que formação terão os médicos que vão decidir da necessidade e da conveniência das transplantações? Que conselhos vão dar ao doente e aos seus familiares e amigos? Que liberdade vão deixar ao dador e ao receptor para que decidam, esclarecidamente, sobre o sacrifício consentido.

Todo este condicionamento pode viciar inteiramente o livre consentimento que a lei e a moral formalmente requerem.

Quem vai definir, pelos efeitos desta lei, os graves deveres dos médicos que hão-de intervir nas decisões a tomar?

Creio que o artigo 2.º da proposta do Governo já deixa margem suficiente para que os mais delicados problemas morais e deontológicos sejam postos.

Os médicos dignos desse nome, e a quem presto a mais rendida homenagem, conhecem, com certeza, o conselho de Maranon, grande médico e grande humanista, que foi um crítico implacável da medicina dogmática.

Recomendava ele, vivamente, aos seus colegas que metessem na cabeça uma ideia fundamental, sa irremediável limitação da medicina», acrescentando que «essa medicina que servem, se como profissão é excelsa, como ciência é humildíssima».

E lembro, finalmente, à Assembleia que as leis já votadas da colheita de órgãos do cadáver e da liofilização de tecidos têm tido entre nós limitadíssima aplicação prática, e parece que seriam esse métodos os primeiros a ensaiar e desenvolver.

Enquanto a colheita de órgãos e tecidos no cadáver e a hofilização não produzirem todos os resultados desejados e que dessas técnicas se podem esperar, não parece avisado facilitar a terapêutica «indiscutível e fundamental» da transplantação de órgãos e tecidos de pessoas vivas.

E prestando também a minha homenagem a todos os Sr Deputados que nesta Casa se ocuparam de matéria tão delicada, dando-lhe o relevo que merece, não queria fechar sem acrescentar aos filósofos, aos juristas e aos teólogos que, ao longo de séculos, defenderam a eminente dignidade da pessoa humana e o direito natural que protege a palavra inspirada de um poeta.

Como não contesto, nem reivindico, nem ambiciono, quero ao menos guardar a obstinação própria da minha cepa aldeã e caminhar olhando os astros e acompanhando a peregrinação profética da poesia.

Pois a quantos acreditam no mito do progresso indefinido acabarei por recordar o soleníssimo aviso de Goethe.

A árvore da ciência não é a árvore da vida. Aquele que provar os frutos da primeira sem provar os da segunda morrerá.

Por todas estas razões, o meu voto vai para a proposto do Governo, que foi, generosamente, até onde podia ir e não deve ser imprudentemente ultrapassada.

Vozes: - Muito bem!

O Sr. Vaz Pinto Alves: - Esta base representa uma opção fundamental em relação à economia da proposta e aos valores éticos, sociais e jurídicos que os transcendentes problemas das transplantações suscitam. A matéria é muito delicada e, por isso, devemos usar de todas as cautelas para que não se subvertam as elevadas finalidades e os valores morais que devem presidir à recolha de órgãos em pessoas vivas. A posição assumida pelo Governo parece-me a mais prudente, na linha de defesa de um valor e de um direito natural como é o da integridade física.

A pessoa não tem um direito absoluto sobre o seu corpo. É um administrador do uso da vida e dos órgãos que servem a vida O direito à saúde envolve uma finalidade ao serviço da vida, e não é um fim em si mesmo. Por isso, outros valores o suplantam, como sejam o direito à vida e à integridade física, de que decorre, naturalmente, o direito à saúde De resto, no direito à saúde contêm-se outros aspectos, como sejam os serviços de saúde hospitalares, que o Estado