Como se vê, a Câmara Corporativa, embora admitindo estar-se perante um preceito restritivo, quando se consideram a economia e a finidade essencial do diploma pensa que «talvez» se possa ir mais longe sem atraiçoar a noção de rigidez que o preceito inculca, «abrindo um pouco» a hipótese ...

No entanto, já as Comissões foram determinadas pela Circunstância de, com a nova regra, se possibilitar «um alargamento substancial» do campo de intervenção da cirurgia das transplantações.

E não há dúvida de que a solução preconizada não sabre um pouco a hipótese», como insinua a Câmara Corporativa, antes dá origem ao «alargamento substancial», a que aludem as Comissões.

Por outro lado, não assiste razão à Câmara quando admite que, com a sua solução, «não atraiçoa a noção de rigidez que o preceito inculca . »

Na verdade, o alvitre da Câmara Corporativa altera profundamente o alcance do preceito contido no artigo 2.º da proposta de lei. Basta pensar, para se ver que assim é, que enquanto o Governo entende que sa transplantação só é lícita quando necessária à sobrevivência do receptor», a Câmara pretende que a licitude da transplantação fique assegurada se «se reveste de indiscutível e fundamental valor terapêutico para o receptor».

Se, porém, a solução «não atraiçoa a rigidez do preceito» e apenas «abre um pouco a hipótese», não se vê necessidade em, por tão pouco se modificar uma norma tão importante e delicada. Se a alteração, pelo contrário, é profunda - e é-o, sem dúvida -, há que medir bem as vantagens e os inconvenientes que comporta.

Aliás, as Comissões tiveram a noção da gravidade do assunto, e por isso só após demorada hesitação se inclinaram, por maioria, para o critério da Câmara Corporativa, que, naturalmente, não deixou de aludir a soluções legislativas de diversos países e a vários aspectos de ordem doutrinal.

No entanto, quando fala de «resultados de certo modo espectaculares» deste n ovo processo de terapêutica clínica, a Câmara não deixa de sublinhar também que, sem muitos domínios, a fase actual é ainda de estudo, investigação e experimentação». Mais reconhece a Câmara que, «de uma maneira geral, não tem sido a falta da citada disciplina legal causa ou motivo de entraves ou impedimentos na expansão do referido processo, quer sob o ângulo da experimentação científica, quer na execução cirúrgica de transplantações em seres humanos».

É curioso que invoca, «para compreensão do problema», as palavras de Pio XII, proferidas em 14 de Setembro de 1952, aos participantes do Congresso de Histopatologia. E embora essas palavras se refiram expressamente ao problema das transplantações, como anota a Câmara, são elas bem expressivas, ao esclarecerem que «o doente não pode conferir maus direitos do que os que possui» .. , que «não é senhor absoluto dele mesmo, do seu corpo e do seu espírito», e que não pode, portanto, «dispor livremente de si como lhe a prouver», já que «se encontra ligado à Ideologia imanente fixada pela Natureza». Assim, «pelo facto de ser usufrutário, e não proprietário do corpo, não tem um poder ilimitado para praticar actos de destruição ou de mutilação de carácter anatómico ou funcional» Mas «poderá dispor, em virtude do principio da totalidade do seu direito de utilizar as funções do organismo como um todo, de partes individualizadas para as destruir ou mutilar, enquanto e na medida em que isso seja necessário para o bem. do seu próprio ser em conjunto, para assegurar a sua existência ou para evitar e, naturalmente, para reparar prejuízos graves e duradouros que de outra forma não poderiam ser afastados ou reparados».

O outro testemunho a que se reporta a Câmara é o de «um teólogo autorizado, R P Bouchaud, que estudou o problema específico das transplantações» Todavia, é evidente que a transcrição feita pela Câmara Corporativa afasta, de modo inequívoco, a sua própria solução, pois aí se fala apenas «na legitimidade da doação de um órgão necessário à sobrevivência de um outro ser humano ...». Ora, não é esta a doutrina que a Câmara propõe.

Com base em textos como estes, não me parece defensável que a Câmara tenha equacionado a questão nos termos em que o fez, até porque, dessa maneira, minimiza ou deixa na penumbra os argumentos com os quais não concorda, e, por contraste, põe em evidência e sobrevaloriza os seus próprios argumentos.

Estar-se-á, como pretende a Câmara, perante o dilema de haver, «de um quadrante, a apetência natural do homem para o bem, para se realizar e dignificar pela ajuda desinteressada, altruísta e humanitária ao seu semelhante» e, «do outro, a força de um racionalismo implacável e cego, que fica indiferente ao sofrimento alheio»?

Penso que não pode pôr-se a questão neste pé, até porque, a usar-se este método, poderão cair em erro pessoas não preparadas para descerem ao âmago de um problema que não consente juízos precipitados ou estudos superficiais e, muito menos, uma sensibilização formada, ou deformada, por aspectos secundários ou, mesmo quando o não são, desligados de outros bem mais carecidos de serem objecto de justa ponderação, na sua relevância ou na sua essencialidade.

Por isso, se se torna necessária uma legislação destinada a «prevenir abusos, precipitações e imprevidência», como pretende a Câmara Corporativa, mais se impõe ainda evitar que seja a própria lei, pela imprecisão ou imprudência das suas normas, a fomentar ou a cobrir juridicamente esses abusos, precipitações e imprevidências.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - E isto bem poderá acontecer se se adoptar a solução da Câmara Corporativa, que também fez vencimento, por maioria, nas Comissões parlamentares consultadas.

Na verdade, como definir «indiscutível e fundamental valor terapêutico para o receptor»? Que a expressão é mais lata, no seu alcance e aplicação, do que a prevista na proposta de lei, não oferece dúvidas a ninguém. Mas até onde pode esta fórmula conduzir os responsáveis directos pela determinação, em cada caso, do seu conteúdo ou significação? Será mesmo justo pô-los perante tão grave contingência e obrigá-los a tomarem decisões seríssimas, quando não se lhes dá uma indicação segura susceptível de afastar dúvidas e de impedir tomadas de posição diferentes em situações idênticas?