Quando se procedeu, entre nós, ao estudo das questões relacionadas com a colheita de órgãos ou tecidos em cadáveres, tendo em vista a disciplina legal da matéria, houve o maior cuidado e escrúpulo, e só se avançou para a definição das normas jurídicas reguladoras depois de o problema ter sido considerado suficientemente esclarecido em todos os seus aspectos.

E valeu a pena. O parecer então emitido pela Câmara Corporativa é um trabalho exaustivo e profundo, que, mesmo para o caso vertente, tem real interesse em diversos pontos de ordem doutrinal. Um nosso ilustre colega estudou esse parecer e logo se lhe rasgaram novas perspectivas para encarar as questões agora em debate, como se pode verificar petas simples leitura do notável discurso que aqui proferiu há dias. E não poderá dizer-se que tenha sido influenciado por uma formação de índole jurídica, pois a sua actividade profissional é a de médico -de médico muito distinto.

Vozes: - Muito bem!

jurídico, e seria a vontade social ou a norma que, por assim dizer, do exterior e artificialmente a sujeitaria ao império do direito ..

A personalidade do homem não se identifica ou confunde com a sua capacidade jurídica, pois «esta última é uma qualidade ou atributo que pressupõe uma substância que lhe sirva de suporte, a qual só pode ser a pessoa, na integralidade da sua essência ...»

Se assim não se entender a personalidade do homem, deixa ela de ter conteúdo e sentido, na medida em que se põe de parte a essência e o valor intrínseco dos seres humanos. «A coisificação do homem encontra, assim - como acentua aquele eminente mestre universitário -, um ambiente extremamente favorável, e é fácil reconhecer quanto esse facto enfraquece a defesa jurídica da personalidade.. », e, por isso, «à doutrina jurídica cumpre assegurar na vida social, pela contemplação das essências e pela firmeza dos princípios, a estrutura capaz de manter todos e cada um dos homens na posição que lhes pertence por natureza e garantir o respeito devido à autonomia pessoal e ao corpo humano, vivo ou morto...».

Não é, por isso, lícito ao legislador ignorar princípios fundamentais, como este que coloca no centro do direito a própria pessoa. «O direito é, assim, essencial e privativo do homem como pessoa - como ente singular e autónomo, racional e livre, e destinado a um fim transcendente, fixo e necessário», ou, por outras palavras, «o fim do direito é o fim do próprio homem».

O homem é um ser autónomo e livre, mas esta autonomia e esta liberdade têm de ser entendidas como não podendo contrariar os deveres individuais e sociais que sobre ele impendem. Ele não pode, no plano ontológico ou no das relações sociais, contrariar, em si, no seu espirito ou no seu corpo, a sua própria finalidade transcendente ou o que por natureza dele é incindível na sua totalidade, como não pode afectar a liberdade e o direito dos outros, nem proceder contra o bem comum, entendido esta na alta significação que lhe atribui a filosofia tomista.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Nesta linha de pensamento, nem poderá negar-se, como lapidarmente se afirma no parecer n.º 14/VIII, de 16 de Dezembro de 1963, da Câmara Corporativa, que sa luta contra a doença integra-se plenamente na concepção cristã do sofrimento por tal forma que ao mesmo tempo que é dever do homem aceitar as atribulações próprias e ajudar os outros a suportar as que os ferem, é também, e pela mesma razão, um dever de caridade e até de justiça» Dever para o indivíduo e dever para a comunidade.

Foi a esta luz que, em 1956, Pio XII, «ao examinar o problema religioso e moral do enxerto da córnea de cadáveres, e sem esquecer que para com estes pode haver obrigações morais, prescrições e proibições, declara expressamente que o defunto a quem se extrai a córnea não é atingido em nenhum dos bens a que tem direito, nem no seu direito a esses bens. A extirpação da córnea não é a extracção de um dos seus bens, porque a presença e a integridade dos órgãos visuais já não têm no cadáver o carácter de bens, pois esses órgãos já lhe não são úteis e já não têm nenhum fim». Quer dizer, e como se frisa no citado parecer, como conclusão a utilização de órgãos e tecidos de cadáveres não ofende nenhum dos fins a cujo cumprimento o defunto tenha direito.

Convém reparar nos termos em que Pio XII fundamentava a doutrina que expunha e que logo nos leva a pressupor o seu pensamento sobre transplantações de órgãos vivos e, portanto, de órgãos indispensáveis à realização das finalidades da vida humana.

Isto não invalida ou faz estiolar as preocupações humanitárias e de solidariedade cristã, que importa estimular devidamente. Nem estas nobres preocupações ficam comprometidas com a solução do n.º 1 do artigo 2.º da proposta de lei. Seria injusto que tal se pensasse de uma norma que vai já muito longe em matéria tão delicada e complexa, quaisquer que sejam as aspectos por que se encare.

Se há normas que devam ser ponderadas antes de vot adas são as que estamos agora a apreciar.

Estou a esforçar-me por aderir a uma solução que tranquilize e que seja insusceptível, por isso, de colocar muitos em situações embaraçosíssimas mas ou até sob coacção psicológica ou moral.

Nem valerá a pena referir as circunstâncias dramáticas e dolorosas provocadas por certas doenças ou doentes, que podem exercer forte influência no sentido