A proposta de lei, neste aspecto, salvaguarda melhor os diferentes valores que importa ter presentes neste domínio tão controverso e inquietante das transplantações.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Direi agora que, quanto à alínea 6) do n.º 1 do artigo 2.º em debate, a Câmara Corporativa sugere se faça alusão expressa à necessidade de se não afectar a personalidade moral do dador, à qual não se refere a proposta de lei. A Câmara Corporativa, em meu parecer, tem razão. E pena é, na verdade, que, neste ponto, não faça vencimento a sua opinião, se bem que possa entender-se que a intenção da Câmara se encontre ressalvada, implicitamente, na fórmula genérica adoptada pelo Governo.

O n.º 2 do artigo 2.º suscita-me também algumas dúvidas Neste preceito define-se o conceito de «sensível diminuição física» na determinação dos riscos que deve impedir-se que o dador corra.

A Câmara Corporativa entende que esta noção deve ser alargada, de modo a realçar, como pressuposto condicionante da ablação do órgão, a necessidade de o dador se encontrar em estado geral de saúde compatível com a operação a realizar.

Parece perfeitamente justificado este alv itre da Câmara Corporativa, que as Comissões da Assembleia Nacional ouvidas perfilham.

No entanto, julgo aconselhável que se elimine o advérbio «consideravelmente», pois deverá sempre proibir-se a ablação de um órgão duplo desde que o outro se encontre afectado, mesmo que pouco afectado.

Para que exigir que esse órgão se ache «consideravelmente» afectado? O advérbio há-de, por si, dar origem a dificuldades de aplicação, pois será sempre muito difícil estabelecer gradações seguras em matéria tão sujeita a diagnósticos fluidos e divergentes.

De qualquer maneira, penso que seria bem preferível se tivesse caminhado no sentido de se adoptar, entre nós, a solução italiana, que se me afigura fruto de uma ponderação mais global e profunda de todos os valores e interesses em jogo O Código Civil italiano proíbe quaisquer actos de disposição do próprio corpo quando daí decorra uma diminuição permanente da integridade física.

Mais tarde, como se disse já, a Lei d e 26 de Junho de 1967, sobre «transplantação do rim entre pessoas vivas», admitiu actos de disposição do rim a «título gratuito», incondicionais e essencialmente revogáveis, com fins de transplantação, mas dentro de um reduzido círculo de pessoas (pais, irmãos germanos ou não germanos do paciente, sempre que sejam maiores de idade). Essa lei só prevê, para este efeito, outros parentes e ainda terceiros estranhos ao círculo familiar, quando o paciente não tenha esses consanguíneos ou nenhum deles seja «idóneo ou disponível» (artigo 1).

Como se vê, esta solução, que se apoia numa já vasta doutrina elaborada pelos juristas italianos, dá a medida da ponderação do legislador que soube medir o alcance do assunto bem como os problemas a que dá origem.

Vozes: - Muito bem!

O Sr Rómulo Ribeiro: - Sr. Presidente: Não trago nenhum discurso escrito e, consequentemente, embora tenha pensado e reflectido sobre o problema (e creio que concluído com ideias claras), receio que as minhas palavras não venham traduzir precisamente aquilo que penso.

De qualquer forma o entusiasmo pela intervenção espontânea talvez contrabalance a imprecisão da linguagem.

Ouvi falar aqui na santa inquisição e no exemplo de Galileu. E ouvi falar também em preocupações de ordem ideológica.

A santa inquisição e o exemplo de Galileu invocam-se com muita frequência em variadíssímos momentos e em variadíssimas latitudes. São invocações que têm talvez o signo das coisas muito usadas e, consequentemente, pouco significativas. Pois nem pelo facto de a inquisição (eu não quero abreviar nenhum juízo a seu respeito) em determinado momento ter agido eventualmente com menos ponderação, nem por isso se poderá evitar (nem se tem evitado) que todos os regimes, todos os sistemas políticos, todos os povos, tenham os seus tribunais, tenham as suas leis, tenham a sua regulamentação, tenham, enfim, as suas normas de procedimento e a sua vida de relação devidamente regularizadas e legisladas. O que se pretende é evitar que se criem «Galileus», dando-se expressão legal a um certo e determinado condicionalismo da ciência.

Os princípios devem avaliar-se dentro de uma época e incrustados naqueles valores que enformam as instituições, a maneira de pensar e a maneira de agir de um povo no seu tempo. Não podemos nós hoje, com a responsabilidade de legislar, presumir aventureiramente circunstâncias do século XIX ou do século XXII. Modestamente e realisticamente, temos que nos ater aos tempos presentes. E é dentro deste condicionalismo que o problema tem que ser posto, que o problema tem que MT seriamente considerado.

Quanto à possibilidade de interpretações de natureza ideológica, não consigo, por mais que pense, saber onde é que elas se filiam.

É evidente que ao propugnar-se a solução do Governo se está a defender apenas a concepção personalista do direito, a evidenciar, a trazer à consciência deste plenário, a realidade de que o homem necessita de protecção e respeito no estado actual das nossas instituições, das nossas vivências, dos nossos sentimentos e até das nossas projecções futuras.

O Homem é o centro e a finalidade do direito. O Homem não podo ser considerado como coisa e ira transformar-se em coisa quando, efectivamente, pudesse servir de utilidade a outro homem.

Não quero entrar em devaneios sobre o futuro, em perspectivar circunstancias em que o homem, com o poder económico, sub-repticiamente, pudesse comprar a um dador, que no aspecto externo apareceria como dador, o órgão de que necessitaria para viver melhor quem sabe até se para ressuscitar a sua juventude perdida!

(Risos)

Eu pergunto se tornássemos isso possível, que esclarecimento, que falsa determinação, que coacções morais não pode haver por detrás de uma aparência?