Mas se não permitirmos que o Homem, apesar de conscientemente (pelo menos na aparência certo daquilo que vai fazer), possa dar algo do seu corpo, sem dúvida que estamos a seguir, a defender um principio. Mas deste princípio, se é necessário tirar alguma inferência política, ou alguma conclusão política, acho que esta Câmara tem de aceitar o repto e tirar as pertinentes ilações. Porque o princípio da integridade do Homem deve continuar a ser defendido e não poderemos deixar de proclamar uma tal afirmação, clara e inequivocamente, neste plenário.
A única inferência política poderá ser apenas esta.
Respeito os meus ilustres colegas que perfilharam e perfilham opinião contrária à minha. E creio até que em relação à maioria deles, se não a todos, não há qualquer divergência de princípios, nem são valores fundamentais que estão em causa. A diferenciação consiste apenas numa maneira diversa de perspectivar as conclusões e de formular com mais ou menos rigor jurídico, segundo me parece, o pensamento respectivo.
O que se pretende, afinal, com a proposta do Governo?
Entravar a evolução e o progresso da ciência, designadamente a ciência médica?
De forma nenhuma. De resto, se quisesse dizer que a proposta do Governo vem entravar o progresso da ciência médica, o mesmo se poderia dizer da proposta da Câmara Corporativa, ou seja, daquela que as comissões defendem.
Nessa altura não haveria necessidade de se articular todo aquele condicionalismo que há-de constituir a base essencial da permissibilidade das transplantações.
Nessa altura bastaria um artigo em que se dissesse assim à medicina consciente e omnipotente é permitido fazer qualquer transplantação.
Sem dúvida nenhuma que não está em causa nem o progresso da ciência nem o respeito que lhe é devido e que nunca é de mais salientar. Que a ciência médica e a sua extraordinária evolução nos merecem todo o carinho e ansiosa esperança. O que está em causa é o enquadramento de uma nova realidade, que nos surge relativamente aos princípios do direito, que tem que continuar a ser o substracto de toda a forma legislativa. Não pode haver dentro de um sistema legal consciente e dentro de uma assembleia legislativa consciente uma lei que fuja fora do substrato geral de valores que enforma toda a sua legislação, que enforma para a sua disciplina jurídica, que enforma o sentido de vida que, efectivamente, deve estar vertido nas leis.
Poderá dizer-se: mas a ciência médica ou qualquer ciência progride numa explosão cujos efeitos é difícil de detectar neste momento?
O nosso dever é estarmos todos os dias atentos e, se for necessário, legislar todos os dias. O dever desta Assembleia era e é apenas este. Simplesmente, qualquer diploma legislativo não pode ir além da previsão normal que é posta àqueles que legislam. Só dentro de condicionalismos precisos, só dentro de dados concretos é que o legislador, efectivamente, se pode pronunciar.
Além daquilo que eu disse na discussão na generalidade, daquilo que foi aqui suficientemente considerado, quer no que concerne a problemas médicos (que, segundo ouvi, têm plena cobertura com a proposta do Governo), quer no que respeita à base ideológica da concepção personalista do homem e do direito (que tão brilhantemente aqui se expôs e se exemplificou com casuística que nos vem de lugares que não estamos muito habituados a considerar bons), depois da referência ao direito comparado que eu desconhecia, depois de tudo isso, eu creio que este plenário está convenientemente elucidado para se pronunciar.
E mais que a melhor maneira de salvaguardarmos os princípios - o principio da integridade do Homem, que para nós continuar a ser um valor- é votar a proposta do Governo. Nem venha dizer-se que pretendemos defender desta maneira a existência de homens diminuídos, que o facto de a transplantação ser limitada ao caso da sobrevivência podia dar em resultado a existência de homens que não vivem uma existência válida, mas uma existência vegetativa. Não Isso já é um problema médico. Esperamos e confiamos que os médicos, ao diagnosticarem como necessário e bom um acto de transplantação, com o sacrifício tremendo que isso implica para o dador, tenham sempre em vista a pretensão de restituir à vida, mas à vida plena, um determinado indivíduo doente e clinicamente condenado.
De resto, um tal argumento prova em contrário. Prova até que a própria apresentação do articulado do Governo seria demasiado lato e, consequentemente, mais aceitável que o da Câmara Corporativa. Mas eu entendo que o Governo foi generoso e teve a justa medida, ao apresentar o articulado que apresentou e que hoje está presente à nossa votação e, consequentemente, à nossa aprovação ou desaprovação.
Há mais um aspecto só que eu quero considerar. É este pelas considerações, aliás muito brilhantes, que eu ouvi aos Srs. Deputados Medeiros Galvão e Mendonça e Moura, ficou-me a id eia de que, segundo a opinião destes Srs. Deputados, existia apenas uma pequena diferença, que não era profunda, entre o articulado do Governo e o da Câmara Corporativa, que, ao fim e ao cabo, a coisa vinha a dar na mesma. A ser assim, julgo, com maioria de razão, que se deve optar pela formulação do Governo, porque é mais clara e porque até a própria circunstância do problema se ter levantado contribui para tomarmos a formulação- do Governo como aquela que, efectivamente, polarizou a ideia da concepção personalista do direito e de uma defesa autêntica do homem integral.
Muito obrigado.
O orador não reviu.
A Sra. D. Teresa Lobo: - Sr Presidente. Inserindo-me inteiramente na linha de rumo traçada pelo Sr. Presidente da Comissão de Justiça, quanto à dignidade da economia da proposta e quanto à dignidade da sua apreciação nesta Câmara, a afastar uma discussão em termos de polémica, gostaria de tecer algumas considerações, complementares, aliás, das que formulei ontem, aquando da discussão na generalidade, que foram centradas fundamentalmente sobre a licitude da operação e sobre a opção que é neste momento oferecida à votação da Assembleia Nacional.
Ouvimos todos com profunda atenção - a atenção que o problema exige pelas suas incidências fulcrais na vida física e psíquica do indivíduo, com repercussões na comunidade de que faz parte, e os argumentos que aqui foram aduzidos em favor de uma e de outra tese