Por mais que custe a certos sectores e a certas «técnicas», os médicos hão-de estar na base de toda a organização médico-social do País e a sua organização corporativa - a sua Ordem - há-de ter que se pronunciar sobre a maneira como hão-de ser organizados e hão-de funcionar os serviços. Por mim, julgo que seria bem que fosse ouvida sobre os aspectos que aos médicos respeitam antes de se tomarem certas decisões, e isto sem quebra do prestígio e das prerrogativas que à Administração respeitam. Suponho mesmo que esse é um dos fins para que ela foi criada.

Faço este apontamento com perfeita consciência do direito que me assiste e do dever que tenho de chamar a atenção do Governo para um problema que pode revestir certa delicadeza política, sem perder o sentido construtivo que sempre procurei dar às minhas intervenções e sem que me faleça a fé nas possibilidades do Regime. Tenho-o como detentor de potencialidades capazes de resolver este problema, como resolveu outros de muito maior delicadeza e de muito mais transcendentes dificuldades.

Pressinto que o ilustre Ministro da Saúde e Assistência, que tem mostrado tão extraordinário interesse por todos os problemas dependentes do seu Ministério. e que tem revelado tão excepcionais méritos, há-de ter sido obrigado a recorrer ao sistema em curso, por força de dificuldades encontradas, quer na obtenção dos meios financeiros, quer na coordenação a fazer nos serviços ainda dependentes de outros Ministérios.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Que os meios financeiros são escassos para a obra a empreender no sector da saúde pública, ele mesmo o declarou recentemente, em conferência da imprensa, quando anunciou o plano nacional de vacinações.

Não se ignora nem deixa de se proclamar o notável esforço financeiro que o Governo tem realizado em certos sectores limitados da saúde pública, como, por exemplo, na luta antituberculosa. Aqui o dissemos por várias vezes, quando demos conta dos resultados da aplicação dessas verbas.

Mas não deixaremos de dizer que, nos vários sectores da saúde pública, outro poderia ser o rendimento social das verbas investidas se outra fosse a organização dos nossos serviços.

A solução destes nossos problemas carece não só de concentração de meios financeiros que se dispersam por outros sectores de manifestamente inferior importância social e dos que se aplicam em algumas obras sumptuárias de discutido interesse público, mas também de um plano geral em que se estabeleça a indispensável ordenação prioritária da execução dos vários elementos que o constituem.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Custa-me ver fechadas, por falta de verba, instituições que foram criadas em obediência a um plano que pretendia satisfazer necessidades reais da população a que foram destinadas ou à preparação de pessoal técnico, de que tanto carecemos, ao mesmo tempo que vemos gastar dinheiros públicos em actividades de mais que discutido interesse imediato ou em manifestações que poderiam ser realizadas com mais comedidas despesas.

Igualmente me custa ver que nada se faz para atrair a nossa juventude para o curso de Medicina, neste país onde a penúria numérica dos médicos é tão manifesta, como ainda há poucos meses o repeti nesta Câmara.

Recordo aqui, a propósito, o que afirmou, ainda há pouco, um dos nossos maiores e mais respeitados catedráticos de Medicina:

A juventude desinteressou-se da profissão médica porque, além de um curso difícil, prolongado, não tem garantias de vida económica assegurada. Uma meia socialização da medicina não resolveu, agravou, o problema profissional do médico. As caixas, uma vez constituídas e estabelecido o pessoal clínico, insuficiente para as tarefas a cumprir, fecham-se à entrada de novos médicos jovens. Estes, logo que a escola lhes entrega a carta, encontram-se numa situação difícil, sem que alguém cuide deles.

Saem da escola com licença para iniciarem a clínica, mas sem matéria para a praticarem.

Vozes: -Muito bem!

O Orador: - Já um dia aqui disse que ninguém estava contente com o sistema a que se refere aquele ilustre mestre - nem os médicos, nem os beneficiários, nem a Ordem.

Pelo que toca ao ensino médico, há também muito a fazer, uma vez que ele continua eminentemente destinado ao diagnóstico e à cura das doenças, fazendo tábua rasa dos nossos problemas sanitários e da medicina preventiva. O que se passa em Portugal passa-se, aliás, em outros países.

Em relatório apresentado pelos Profs. Neimann e Manciaux ao Simpósio Europeu de Medicina Preventiva, organizado pelo Bureau Regional da O. M. S. para a Europa e que reuniu em Nancy, em Julho de 1964, afirmou-se, em resposta a duas perguntas do Prof. Lunn, feitas em 1961, na Conferência de Edimburgo, organizada pela O. M. S. para a formação médica: Que os médicos não eram hoje convenientemente preparados pelo ensino que recebiam para as missões que lhes competiam; Que dificilmente se poderiam definir os meios e as medidas para melhorar o ensino nas Faculdades porque, embora as possibilidades técnicas sejam numerosas, a sua aplicação prática é muito difícil.

E ali se afirmou que, efectivamente, a «medicina clássica» que se ensina nas organizações hospitalares-universitárias se faz em condições bastante afastadas do concreto - com lições magistrais e casos clínicos artificialmente seleccionados, que preparam mal o médico para o seu futuro papel na sociedade.

Paralelamente a essa medicina clássica, mas fora do hospital, desenvolve-se uma nova medicina, essencialmente preventiva -a medicina social-. que traz o cunho da nossa época e que se pratica em instituições extra-universitárias que os estudantes de Medicina, infelizmente, não frequentam. São raros os mestres que ali conduzem os seus alunos e os procuram interessar pelos actos de medicina preventiva que ali se realizam.

E indispensável que o médico de hoje, ao lado da sua preparação clínica, possa ser esclarecido sobre os problemas médico-sociais que passam por essas instituições extra-hospitalares, tome conhecimento dos problemas sanitários da região, conheça as instituições com que deve cooperar, aprenda a trabalhar em equipa e passe a interessar-se pelos problemas familiares, profissionais e sociais dos doentes. Os estágios nessas instituições seriam do maior proveito para o futuro médico.