dominando, ainda por largo espaço, reboando pelas encostas e entre as matas do Manjacaze!

Quem seria o compositor anónimo daquela maravilha?

Que alma não teria quem soube meter em três ou quatro compassos a guerra africana com toda a acre rudeza da sua poesia?

A admiração e o respeito do cronista são a expressão da abertura natural com que saudamos todos os valores culturais para logo os incorporar, assimilar ou simplesmente enriquecer.

Abertos para admirar e prontos para conviver, honramo-nos de ficar e de construir, lado a lado, brancos e pretos, uma perfeita comunidade.

Nunca me pareceu necessário gastar o meu tempo regimental com dissertações académicas, que não saberia fazer, ou teorias económicas, que havia de estropiar.

Cada dia me parece mais conveniente que nesta Casa se apurem, se decantem, se enobreçam todos os materiais pertinentes à coisa pública e à actividade política.

Se, na verdade, queremos cumprir o mandato histórico de ficar e construir a nossa civilização em África, precisamos de recordar que ela- repousa sobretudo no homem ungido dessas virtudes nucleares, que eu me propus recordar.

Saint Exupery explicava uma vez, com encantadora suavidade, mas perfeita segurança, que uma catedral é coisa muito diversa de uma reunião de pedras.

É geometria e é arquitectura.

Não são as pedras que a definem, é ela que enriquece as pedras da sua própria significação.

As pedras são enobrecidas por serem pedras de uma catedral.

A catedral absorve até as gárgulas mais disparatadas no seu cântico.

E de outra vez, no Piloto de Guerra, ensinava com a naturalidade de quem tem o segredo da matéria, precisamente aquela matéria que os compêndios não comportam.

Onde não existe o sentimento de pátria, nenhuma linguagem será capaz de o transmitir.

Vozes: -Muito bem!

O Orador: - Esse sentimento nasce dentro de nós, mas não pertence ao domínio da palavra, mas ao império dos actos.

E o acto essencial tem um nome - sacrifício.

Sacrifício que não significa amputação nem penitência, porque é essencialmente um acto criador, doação de nós mesmos àquilo que pretendemos.

A Pátria não é uma soma de interesses, mas uma soma de dons.

O homem ungido dessas virtudes nucleares não será o resumo dos homens, mas pode confundi-los no cântico da nossa comunidade, expressão de fidelidade e sacrifício.

Daquela fidelidade que ao longo dos séculos o manteve respeitoso da autoridade e não o deixou perder-se em acções incoerentes, e daquele sacrifício prenhe da mais pura doação que Camões traduziu em «Amor da Pátria não movido de prémio VII mas alto e quase eterno».

Desculpem, Srs. Deputados, que eu tenha abusado destes temas sem conteúdo económico.

A chaga do subdesenvolvimento - espécie sofisticada da catedral do sacrifício - vai-me deixando indiferente quando, pela mão dos entendidos, se levanta- a visão catastrófica do desenvolvimento desequilibrado, onde se perderia totalmente aquela harmonia social que os nossos felizes avós, ainda mais subdesenvolvidos, tinham conseguido encontrar.

Por mais voltas que dê à minha velha estante, não sou capaz de defender as fronteiras da Pátria dos seus inimigos com uma cuidadosa e prioritária planificação do bem-estar.

Vias correm agora por aí outras vozes, vozes de que o- abraço do económico e do social se processa sobre as bênçãos de uma planificarão a longo prazo; de que à econometria sucede a sociometria a desvendar a dinâmica do grupo e o mistério da autoridade; vozes de que a acção política se torna incapaz de travar a técnica e de que as estruturas sociais acabarão por sofrer modificações qualitativas que conduzirão ao sentido da interdependência.

Conclamam depois essas vozes que os patrões -indivíduos ou estados - garantem o capital e também, a bom termo, os próprios interesses da classe operária, pois do seu bem-estar e da sua instrução e qualificação dependerá a estabilidade dos investimentos.

E, assim, a luta contra a desigualdade que, durante um milénio, sustentou o esforço político do Ocidente também acabará por perder a sua força inspiradora.

Estas são as últimas teses dos sábios mais recomendados para assegurar a felicidade dos povos.

E, na sequência das sucessivas planificações, a paixão política cederia o passo à vigilância, à pressão nuancé, à visão equilibrada que, em atenção ao interesse próprio, considera o interesse alheio, como já se tem experimentado no seio das comissões paritárias.

Os governantes já não governam, conciliam, e a poliarquia triunfante deverá derreter as noções do consenso e na unidade do Poder.

Finalmente, no coroamento destas novas ideias estaria a reforma do ensino, que conduziria a educação das- massas para o ideal da independência e do conforto que sempre as solicita e afaga.

Somos e seremos o escândalo do Mundo se continuarmos a cultivar amorosamente as nossas tradicionais virtudes e se reconhecermos que as marcas de um alto nível económico não estão facilmente ao nosso alcance.

O nosso bem-estar tem de ser, sem miragens nem devaneios, uma honesta mediania, produto de poupança e de trabalho, de poupança rigorosa e de trabalho pertinaz.

Assim, as populações nativas de Angola, Moçambique, Guiné e Timor devem ser preparadas, através das suas elites mais representativas, para aquela doação que lhes recordei, não as deixando caminhar, enganosamente, pela via rápida da promoção acelerada de encontro ao ideal da independência e do conforto.

Não quero frustrar as grandes esperanças nas novas técnicas, já tocadas da asa da magia e da alquimia, mas prefiro ficar com os mais prudentes, considerando que o equilíbrio político e social só pode obter-se olhando muito para diante, desenvoltamente, e muito para trás, reconhecidamente.

Quanto mais longe forem lançadas as nossas posições do futuro, mais recuadas devem ser as amarras com que nos seguramos ao passado.

Vozes: -Muito bem!

O Orador: - Talvez assim possamos ficar de pé e onde estamos.