Ao encararem-se as realidades daquele continente e dos portugueses que ali ainda estão ligados à sua vida tradicional é frequente que os espíritos europeus, habituados à metrópole e às soluções aqui adoptadas, reajam diferentemente de nós, os que ali diariamente contactamos com os hábitos e as gentes de África. Daí o que poderia ter parecido exagerada sensibilidade por parte do ilustre Deputado avisante, Dr. Manuel Nazaré.

Será, contudo, no equilíbrio destes dois ângulos de visão que a solução portuguesa tem de sei- encontrada. Por isso, ainda bem que foi este meu ilustre colega por Moçambique a levantar a questão. Sendo o único dos Deputados da província que- reside na metrópole, e há tantos anos que temos de considerar a sua formação e a sua sensibilidade como europeias, trouxe-nos a nós, Deputados que vivemos permanentemente em Moçambique, o contributo ide pontas de vista que completaram os nossos e muito nos irão auxiliar a encontrar o ponto sensato da solução. Espero que, em contrapartida, possamos ter contribuído para o seu esclarecimento., o que importa muito, por estarmos irmanados pela defesa dos interesses comuns dos Moçambicanos, que a todos nos elegeram para, por igual, os representar nesta Assembleia Nacional.

Para a justa visão do problema, das suas dimensões e das medidas tomadas para lhes responder no País inteiro, muito contribuíram também outros ilustres Deputados que se pronunciaram, mostrando como em todo o Portugal os «cancros» urbanísticos existem e se tem tentado dominá-los por medidas adequadas. Mas, paira além disso, de uma das intervenções aqui realizadas se conclui que, neste preciso momento, muitos países se, debatem com as mesmas questões, tendo já sido posta a preocupação à escala das Nações Unidas, cuja colaboração foi pedida por largo número deles. E, pois, um fenómeno humano e universal, não se circunscrevendo a Moçambique, a Portugal ou sequer a um só continente.

Parece ao nosso alcance uma decidida declaração do guerra às condições em que vivem as populações na periferia dos aglomerados urbanos.

E o incremento desta luta que se pede, e solidarizo-me inteiramente com os que aqui o fizeram e apoiaram. É preciso, é inadiável, que. se acelerem os estudos e a sua execução, sem que se considere legítimo o argumento de que são difíceis e de dispendiosa realização, para aceitarmos que o tempo corra sobre a inércia.

Em todo o caso, e como já foi salientado, a solução tem que ser possível, e não poderá ser uniforme, pois há que atender aos meios diferentes a que se, aplica. Nem, tão-pouco, deve ser gratuita na sua generalidade.

Referindo-me agora especialmente a Moçambique, gostaria que ficasse expressa uma distinção, que julgo essencial. É a que respeita aos economicamente débeis e aos

que vivem integrados numa civilização distinta da nossa, porque ainda tribal ou fortemente arreigada a ela.

E aqui permito-me recordar o apelo que não há muito fiz nesta Assembleia para que se considere como urgente e no primeiro plano das preocupações nacionais a promoção social dos autóctones para o nosso estádio de cultura e civilização, o que só julgo possível através de povoamento planificado e decididamente executado. Este caso da habitação ilustra claramente a minha recente intervenção.

Estamos perante três realidades humanas distintas: a que se caracteriza pela sua exclusiva vida tribal; a dos que iniciam a destribalização e se pretendem integrar na civilização ocidental, que tem precisamente como uma das suas características1 o urbanismo, e a dos que, já integrados na urbe, sofrem pelos desníveis económicos de uma organização social que, desde sempre, tem trazido consigo essa consequência dolorosa.

Ora os ainda tribalizados não podem considerar-se economicamente débeis. Este conceito é específico da nossa civilização e da nossa cultura. A tribo e o clã integram o indivíduo em comunidades que se bastam a si próprias, em que o homem e a família estão equilibrados com o meio físico e social em que s& inserem. Aí não há economicamente débeis ou fortes, porque não chega a haver economia, a não ser nos rudimentos de subsistência e na propriedade comunitária. E não há também individualmente conflitos ou frustrações daí derivados.

Haverá atraso cultural, haverá uma zona de humanidade que pretendemos fazer deslocar do seu plano tradicional para o nosso, convictos como estamos, de que isso corresponde melhor à dignidade do homem e dos grupos humanos. Mas não há conflito, porque, na sua concepção, não há mais pobres ou mais .ricos, não há legislação que não seja a aceite e compreendida por todos, nem outra hostilidade para além da natureza, em que há que incluir também a dos homens.

Estes não são economicamente débeis e são normalmente felizes.

Depois, nas camadas que iniciam a dolorosa subida para a conquista da nossa civilização - tão mais dolorosa quanto tem de ser brusca, sem os cambiantes que séculos largos nos permitiram -, temos a considerar factores negativos muito diferentes dos da exclusiva debilidade económica.

Esta já aqui se faz sentir, mas o homem que era antes suficiente na sua tribo ou no seu clã, o indivíduo que construíra a sua dignidade, em torno de bases que agora não são aceites, esse sente-se atingido no mais íntimo da sua personalidade. Já não se sente apto para nada, não percebe as leis que o passam a reger, não identifica por si os poderes que agora se pretendem impor. A própria natureza deixou bruscamente de ser uma realidade tutelar, conhecida e manejável, para passar a ser hostil, na sua dependência da propriedade privada e limitada em extensão, na existência de uma economia monetária, na necessidade estranha e nova do trabalho regular e monótono.

E esta a zona social de penumbra. Aqui o homem á desconfiado ou até revoltado, porque não se integrou ainda. Tudo o que vive lhe é estranho: porque já está desenraizado das origens primitivas. É a custo de largas feridas de sensibilidade e de cicatrizes profundas que se formam na sua- antiga personalidade que a adaptação se faz. Isto é, no entanto, válido para o Preto, para o Branco ou para o Amarelo. Por todo o ultramar são conhecidos os casos de destribalização do europeu, em que este, transplantado para África, não consegue adaptar-se ao